quarta-feira, 14 de julho de 2010

O burro lê a vida.

Criança, eu fazia funeral de passarinho , não só eu, também meus irmãos e alguns amigos. Fazíamos o caixãozinho com papelão, o ornamentávamos com os motivos fúnebres devidos, recolhíamos flores nos jardins e fazíamos o cortejo até a cova, sempre no jardim do prédio. Na verdade, se me lembro bem, nunca sepultamos nenhum passarinho, nunca tivemos um, mas sim aqueles pintinhos que comprávamos na feira, como brinquedos de criança e eles morriam muito rápido. Lembro de um que vi morrer: ele caído no chão, ainda arfando e eu tentando colocá-lo em pé, até que alguém adulto me convenceu que ele já estava morto.
Certa vez pedimos, a uma velha que morava numa casa vizinha, em cujo jardim havia flores, algumas para um enterro. Ela não deu, disse que aquilo era pecado, sepultar bicho.
Tive uma tartaruga, daquelas verdes e pequenas, que ganhei de minha tia. Um bicho que vivia pelos cantos do apartamento, escondida, muitas vezes dormindo sobre uma tomada elétrica que ficava no chão. Aí foi encontrada morta. Também teve cortejo e rico. Foi o evento mais interessante de sua existência entre nós.
A Alzira fabricava o caixão, em papel forrado com rendas brancas costuradas por dentro e por fora.
Eu marcava bem o local da sepultura e decorrido um tempo que julgava suficiente, tentava a exumação, queria encontrar o esqueleto com seus ossos limpinhos. O máximo que consegui alguma vez encontrar foi umas coisas que pareciam restos de penas sujas de terra que se desintegrou entre meus dedos ávidos de uma relíquia. Eram tão frágeis aqueles corpinhos.
Quando Alzira morreu, seu caixão foi um bem simples; uma estrutura de madeira forrada de tecidos roxo, quase lilás; era seu desejo, um caixão roxo, alguém lembrou. Flores dispostas em volta de seu corpo, creio que brancas. Seu rosto descoberto e sua face impassível, quase a mesma, a doença não fez muitos estragos em sua fisionomia. Um véu de tule recobria o corpo e uns mosquitinhos teimavam em tentar pousar ali.
Nunca fui cavar a sua sepultura pra encontrar seus ossos limpos, talvez tenha ficado a lembrança da infância de que nunca encontrávamos nada. Mas imagino a sua caveira com aqueles ossos largos, creio que reconheceria seu rosto.
A lembrar daquele corpo do pintinho estirado no chão, morrendo, penso agora, que não há mistério nenhum na morte, mistério mesmo é a vida, esta nega tudo o que é mais certo: a dissolução constante, o menor esforço.
SP, 14 de julho 2010

2 comentários:

  1. Meu cachorro morreu na semana passada. Foi a experiência mais próxima que eu tive com a morte. Dos parentes e amigos que já se foram, eu não presenciei a partida. Em minha profissão de enfermeira, vi algumas pessoas morrendo – não muitas, e nenhuma delas eu conhecia que me inspirassem um ritual de despedida. De todos esses mortos, eu não decidi nenhuma morte. Foi sempre uma fatalidade, ou a hora de cada um. Por isso, a eutanásia do meu cãozinho me marcou tanto. Ele já vinha doente há algum tempo e muitas vezes eu tinha imaginado o corpo dele sem vida, tinha chorado por pensar que chegaria o dia em que eu não o veria mais. Quando ele teve o último episódio das repetidas crises de sua doença, ficou com as patas traseiras paralisadas e já quase não sustentava o resto do corpo; a face estava deformada e ele era tomado por tremores. Eu quase não o reconhecia, e foi aí que iniciamos o ritual de despedida. Ele passou sua última noite – eu sabia que seria a última – aconchegado na minha cama. Pouco antes de levá-lo à clínica veterinária, conversei com ele sobre nossa separação. Depois veio o procedimento técnico, a explicação sobre a ação humanitária de não permitir que um animal sofra, as injeções e as palavras da veterinária sobre o que ela chamou de passagem. Eu o coloquei deitado na almofada de sua maleta de transporte, coloquei minha mão sobre seu dorso e acompanhei sua morte. A veterinária disse que eu podia mandar cremá-lo e ficar com as cinzas, ou que poderia enterrá-lo no quintal ou em um cemitério de animais. Preferi deixá-lo na geladeira da clínica, para que a prefeitura recolhesse seu corpo para incineração. Não importavam cinzas, enterro ou flores. Eu já não o tinha mais.

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

    ResponderExcluir