terça-feira, 20 de julho de 2010

O Burro na pescaria

O quadro abaixo foi pintado por Arthur Scovino, em tela previamente tratada com texturas em acrílico, mede aproximadamente o,70 x 1,0 m, tinta acrílica. Pode ser visto no Blog do autor: EXERCÍCIOS







Há para qualquer quadro, algumas possibilidades de leitura.
Pode-se procurar identificar as figuras representadas e suas relações numa narrativa.Outra possibilidade é privilegiar as marcas (ou elementos visuais que constituem a imagem) e decifrar as suas relações com possiveis representações, e aproximar-se de algo que talvez também possa ser chamado de narrativa. Esta segunda possibilidade de leitura é a que experimentamos aqui.
Comecemos por observar que a imagem estrutura-se em polaridades entre elementos duplos;  a primeira é a das cores, em que estabelece-se a contraposição das cores quentes contra as frias: as marcas no centro da imagem, que parecem ser as protagonistas, em tons de vermelho até amarelo: quentes , contra as do fundo que vão do azul ao verde: frias. Como os matizes , principalmente das figuras centrais, estão numa escala muito elevada, com grande brilho e intensidade, e a tendência das gamas do amarelo a vermelho é trazer a imagem para a frente, avançando e as do azul ao verde, ao contrário, recuam, isso induz à sensação de que os objetos centrais levitam, flutuando acima do fundo e destacados deste. Esta relação já estabelece uma primeira tensão, como se percebessemos que haverá uma divisão, que os elementos da dupla afastam-se entre si.
A outra dupla está constituida nos dois elementos mais notáveis do quadro: os dois círculos. 




Os dois círculos, por serem da classe de formas mais simples e imediatamente identificáveis, concentram muita energia e atraem soberanamente a atenção do olhar, tornando-se portanto os protagonistas por excelência da pintura. As formas, posições e cores estabelecem ao mesmo tempo relações de atração e repulsão entre os dois círculos; atraem-se pela analogia formal, pelas cores aproximadas e pela inserção quase no mesmo nível; repelem-se pela diferença de dimensões, e se as cores estão próximas, diferenciam-se, pois se o menor círculo está em vermelho mais escuro, com um ponto quase negro ao centro, tendendo portanto a contrair-se e afastar-se para o fundo, o círculo maior e mais claro, com a borda amarelada, torna-se muito mais expansivo e tende a aproximar-se para a frente. Este jogo estabelece uma fortíssima tensão entre essas energias conflitantes, entre aproximação e afastamento; se as formas e cores e posições os aproximam, as outras qualidades os afastam. Quem olha , portanto, fica como que preso esperando que o conflito se resolva.
Podemos ainda notar que a relação entre os dois circulos cria uma linha, não marcada, mas percebida, posicionada em diagonal que conduz o movimento do olhar nessa direção, no sentido ascendente e da esquerda para a direita, essa linha diagonal prossegue além dos dois circulos e apoia-se na linha formada pela margem entre a área verde acima e a azul abaixo. Esta linha por sua ligação aos dois circulos protagonistas, pode-se dizer que é a estrutura mais marcante da composição.
Entretanto ela é desafiada por uma outra diagonal, a seguir:


 


Esta diagonal inicia-se no canto superior esquerdo, segue pela margem formada entre as áreas verde e azul, atravessa entre os dois círculos e vai terminar no canto inferior direito, saindo do quadro. E apesar da força deste caminho para o deslocamento do olhar, ele não predomina, pois é equilibrado pela força da outra diagonal que já identificamos entre os dois círculos. Porém a luta entre esses dois elementos cria um novo e potente foco de tensão, mais uma vez prendendo o olhar que espera a resolução pacífica.
As relações que são notadas nos elementos que seguem, tendem não tanto a gerar tensões divisoras, mas unificadoras;




o círculo vermelho escuro identifica-se e une-se à área verde acima, pela complementaridade das cores (vermelho sendo complementar a verde). A distância e o espaço que há entre esses elementos propõem uma tensão que unifica, o verde e o vermelho atraem-se mutamente e as suas superfícies que estão afastadas unem-se por essa atração.




A mesma relação estabelece-se entre o círculo maior e o fundo em azul, a cor do círculo maior tendendo para o laranja atrai o fundo azul por sua condição de complementar (laranja complementar do azul).




Os elementos marcados aqui, funcionam como repetições mais ou menos gerais dos elementos centrais do quadro, fazem o papel de pequenos comentários, ao mesmo tempo que estabelecem uma relação ritmica e acrescentam graça pela leveza e movimento mais irrequieto.
Há muitos elementos que podem-se notar e analizar e que confirmam as tensões já notadas e que contribuem para gerar o interesse e a atração do olhar sobre o quadro.
Boa diversão...

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O burro lê a vida.

Criança, eu fazia funeral de passarinho , não só eu, também meus irmãos e alguns amigos. Fazíamos o caixãozinho com papelão, o ornamentávamos com os motivos fúnebres devidos, recolhíamos flores nos jardins e fazíamos o cortejo até a cova, sempre no jardim do prédio. Na verdade, se me lembro bem, nunca sepultamos nenhum passarinho, nunca tivemos um, mas sim aqueles pintinhos que comprávamos na feira, como brinquedos de criança e eles morriam muito rápido. Lembro de um que vi morrer: ele caído no chão, ainda arfando e eu tentando colocá-lo em pé, até que alguém adulto me convenceu que ele já estava morto.
Certa vez pedimos, a uma velha que morava numa casa vizinha, em cujo jardim havia flores, algumas para um enterro. Ela não deu, disse que aquilo era pecado, sepultar bicho.
Tive uma tartaruga, daquelas verdes e pequenas, que ganhei de minha tia. Um bicho que vivia pelos cantos do apartamento, escondida, muitas vezes dormindo sobre uma tomada elétrica que ficava no chão. Aí foi encontrada morta. Também teve cortejo e rico. Foi o evento mais interessante de sua existência entre nós.
A Alzira fabricava o caixão, em papel forrado com rendas brancas costuradas por dentro e por fora.
Eu marcava bem o local da sepultura e decorrido um tempo que julgava suficiente, tentava a exumação, queria encontrar o esqueleto com seus ossos limpinhos. O máximo que consegui alguma vez encontrar foi umas coisas que pareciam restos de penas sujas de terra que se desintegrou entre meus dedos ávidos de uma relíquia. Eram tão frágeis aqueles corpinhos.
Quando Alzira morreu, seu caixão foi um bem simples; uma estrutura de madeira forrada de tecidos roxo, quase lilás; era seu desejo, um caixão roxo, alguém lembrou. Flores dispostas em volta de seu corpo, creio que brancas. Seu rosto descoberto e sua face impassível, quase a mesma, a doença não fez muitos estragos em sua fisionomia. Um véu de tule recobria o corpo e uns mosquitinhos teimavam em tentar pousar ali.
Nunca fui cavar a sua sepultura pra encontrar seus ossos limpos, talvez tenha ficado a lembrança da infância de que nunca encontrávamos nada. Mas imagino a sua caveira com aqueles ossos largos, creio que reconheceria seu rosto.
A lembrar daquele corpo do pintinho estirado no chão, morrendo, penso agora, que não há mistério nenhum na morte, mistério mesmo é a vida, esta nega tudo o que é mais certo: a dissolução constante, o menor esforço.
SP, 14 de julho 2010

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Athenâ

Colagem . Diâmetro: 300mm.

Inspirada no texto de
Junito de Souza Brandão, do livro Mitologia Grega, Vol. II; pags. 31 a 33, da editora Vozes.
A seguir:
...

O perfil de Atená, como o de Zeus e o de Apolo, evoluiu consideravelmente no mito, de maneira constante e progressiva, no sen­tido de uma espiritualização.
Dois de seus atributos configuram os termos dessa evolução, a serpente e a ave (a coruja). Antiga Grande Mãe minóica, proveniente de cultos ctônios, domínios da serpente, elevou-se, com o sincretismo creto-micênico, a uma posição dominante nos cultos urânios e olím­picos, domínios da ave, como deusa da fecundidade e da sabedoria; virgem, protetora das crianças; guerreira, inspiradora das artes e da paz.
Seu nascimento foi como um jorro de luz sobre o cosmo, aurora de um mundo novo, atmosfera luminosa, semelhante à hierofania de uma divindade emergindo de uma montanha sagrada. Sua aparição marca um transtorno na história do mundo e da humanidade. Uma chuva de neve de ouro caiu sobre Atenas, quando de seu nascimento: neve e ouro, pureza e riqueza, tombando do céu com a dupla fun­ção de fecundar, como a chuva, e de iluminar, como o sol. E é, por isso mesmo, que em certas festas de Atená se ofereciam bolos em forma de serpente e de falo, símbolos da fertilidade e da fecun­didade.
Para relembrar o nascimento de Erictônio, o instituidor das Panatenéias, e que Atená escondera num cofre em companhia e sob a proteção de uma serpente, se oferecia aos recém-nascidos atenien­ses um amuleto representando uma pequena serpente, símbolo da sabedoria intuitiva e da vigilância protetora. Como "Palas Atená", ela é defensora, no sentido físico e espiritual, das alturas, das Acró­poles, em que se estabelece. A cabeça de Medusa colocada no centro de seu escudo é como um espelho da verdade, para combater seus adversários, petrificando-os de horror, ao contemplarem sua própria imagem. Foi graças a tal escudo que Perseu levou de vencida a terrível Górgona, mostrando assim que Atená é a deusa vitoriosa pela sabedoria, pelo engenho e pela verdade. Sua lança é uma arma de luz: separa, corta e fere, como o relâmpago rasga as nuvens. A proteção concedida a heróis como Aquiles, Héracles, Perseu e Ulisses simboliza a injeção do espírito na força bruta, com a consequente transformação da personalidade do herói.
Deusa da fecundidade, deusa da vitória e deusa da sabedoria, Atená simboliza mais que tudo a criação psíquica, a síntese por re­flexão, a inteligência socializada.
A coruja, em grego (gláuks), etimologicamente, "brilhan­te, cintilante", porque enxerga nas trevas; em latim noctua, "ave da noite", era, como se viu, consagrada a Atená. Ave noturna, relacio­nada, pois, com a lua, a coruja não suporta a luz do sol, opondo-se, desse modo, à águia, que a recebe de olhos abertos. Deduz-se, daí, que o mocho, em relação a Atená, é o símbolo do conhecimento racional com a percepção da luz lunar por reflexo, opondo-se, des­tarte, ao conhecimento intuitivo com a percepção direta da luz solar. Explica-se talvez, assim, o fato de ser a coruja um atributo tradicio­nal dos mânteis, dos adivinhos, simbolizando-lhes o dom da clarivi­dência, mas através de sinais que os mesmos interpretam. Noctua, ave das trevas, ctônia portanto, a coruja é uma excelente conhecedora dos segredos da noite. Enquanto os homens dormem, ela fica de olhos abertos, bebendo os raios da lua, sua inspiradora. Vigiando os cemitérios ou atenta aos cochichos da noite, essa núncia das trevas sabe tudo o que se passa, tendo-se tornado em muitas culturas uma poderosa auxiliar da mantéia, da mântica, da arte de adivinhar. Daí a tradição segundo a qual quem come carne de coruja participa de seus poderes divinatórios, de seus dons de previsão e presciência. Eis aí por que, no Antigo Testamento, Javé, certamente com o fito de banir a superstição, proibia comer carne de mocho: e (não comais) todo o género de corvos, e o avestruz, e a coruja. . . (Dt 14,14-15).
No mito grego a coruja é representada por Ascáfalo, que, tendo denunciado a Perséfone, foi transformado em mocho.4
Para os Astecas, a coruja configura o deus dos infernos, repre­sentada como a guardiã da morada obscura das entranhas da terra. Associada às potências ctônias, é um avatar da chuva, das tempes­tades e da noite.
No rico material funerário descoberto no Peru, nas tumbas da civilização pré-incaica Chimu, se encontra, com frequência, a repre­sentação de um cutelo de sacrifício, em forma de meia-lua, encimado por uma divindade semi-humana e semipássaro, indubitavelmente uma coruja. Este ícone, ligado à idéia de sacrifício e de morte, está adornado com colares de pérolas e de conchas marinhas, o peito co­lorido de vermelho e cercado, não raro, por dois cães, cuja signifi­cação psicopompa é bem conhecida. Até hoje, aliás, o mocho é uma divindade da morte e guardião de cemitérios em numerosas culturas índio-americanas.
Mas, já que os mortos governam as sementes, que alimentam os vivos, a coruja é um símbolo digno de uma deusa também da vegetação.

4. Ascáfalo era filho de uma ninfa do rio Estige e de Aqueronte. Estava presente no Jardim do Hades, quando, coagida por Plutão, Perséfone comeu um grão de romã, cortando-lhe toda e qualquer esperança de retorno ao mundo da luz. Como Ascáfalo presenciara a quebra de jejum por parte de Perséfone, denunciou-a. Em sua cólera, Deméter o transformou em coruja. Ver o mito de Deméter e Perséfone, Vol. I, p. 283-310.
...