sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Três Poemas de Amor e um Fado

O burro de coração partido

(e pra quem demora mais a entender: tem ironia)



BILHETE EM PAPEL ROSA

Ao meu amado secreto, Castro Alves.

Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio.
Vê estas olheiras dramáticas,
este poema roubado:
"o cinamomo floresce
em frente do teu postigo.
Cada flor murcha que desce,
morro de sonhar contigo."
Ó bardo, eu estou tão fraca
e teu cabelo é tão negro,
eu vivo tão perturbada,
pensando com tanta força
meu pensamento de amor,
que já nem sinto mais fome,
o sono fugiu de mim. Me dão mingaus,
caldos quentes, me dão prudentes conselhos,
eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido,
a tua boca de brasa, Antônio, as nossas vidas ligadas.
Antônio lindo, meu bem,
ó meu amor adorado,
Antônio, Antônio.
Para sempre tua.

                        Adélia Prado
                        Bagagem



TERESA

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quanto vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando
                               [que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

                        Manuel Bandeira
                        Estrela da Vida Inteira



PRANTO PARA COMOVER JONATHAN

Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

                        Adélia Prado
                        O Pelicano



O FADO






A letra do fado

MORADA ABERTA
(Carlos Tê/ Rui Veloso)

Diz-me o rio que conheço
Como não conheço a mim
Quanta mágoa vai correr
Até o desamor ter fim

Tu nem me ouves lanceiro
Por entre vales e montes
Matando a sede ao salgueiro
Lavando a alma das fontes

Vi o meu amor partir
Num comboio de vaidades
Foi à procura de mundo
No carrossel das cidades
Onde o viver é folgado
E dizem, não há solidão
Mas eu no meu descampado
Não tenho essa ilusão

Se eu fosse nuvem branca
E não um farrapo de gente
Vertia-me aguaceiro
Dentro da tua corrente
E assim corria sem dor
Sem de mim querer saber
E como tu nesse rumor
Amava sem me prender

Vai rio, que se faz tarde
Para chegares a parte incerta
Espalha por esses montes
Que tenho morada aberta.


este desenho já foi postado anteriormente aqui

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Uma palavra

Cura do servo de um centurião — 'Quando acabou de transmitir aos ouvidos do povo todas essas palavras, entrou em Cafarnaum. 2Ora, um centurião tinha um servo a quem prezava e que estava doente, à morte; ' Tendo ouvido falar de Jesus, enviou-lhe alguns dos anciãos dos judeus para pedir-lhe que fosse salvar o servo.
Estes, chegando a Jesus, rogavam-lhe insistentemente: "Ele é digno de que lhe concedas isso, 5pois ama nossa nação, e até nos construiu a sinagoga". 6Jesus foi com eles. Não estava longe da casa, quando o centurião mandou alguns amigos lhe dizerem: "Senhor, não te incomodes, porque não sou digno de que entres em minha casa; 7nem mesmo me achei digno de ir ao teu encontro. Dize, porém, uma palavra, para que o meu criado seja curado. 8Pois também eu estou sob uma autoridade, e tenho soldados às minhas ordens; e a um digo 'Vai!' e ele vai; e a outro 'Vem!' e ele vem; e a meu servo 'Faze isto!' e ele o faz". 9Ao ouvir tais palavras, Jesus ficou admirado e, voltando-se para a multidão que o seguia, disse: "Eu vos digo que nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé". 10E, ao voltarem pa­ra casa, os enviados encontraram o servo em perfeita saúde.
(grifo meu)

Lucas 7, 1 – 10  ( A Bíblia de Jerusalém)


                Virtudes da cebola

            Quando fiz 8 ou 9 anos, pode ter sido também 10, não sei precisar, teve uma festinha lá em casa, um bolo confeitado, groselha , sanduíches de pão de forma com patê de fígado de galinha. Era tudo muito simples e pobre, mas bastava. A criançada da vizinhança comparecia, cantava o parabéns; sempre estavam presentes também a tia Tereza, tio Jayme e os filhos Maurício e Gisele.
Dessa vez eu convidei o Adelino, e não me lembro de tê-lo convidado outra vez antes, mas depois com certeza não o fiz mais. Depois que ele se separou da Alice e de nós, pouco antes de eu completar 4 anos, nunca mais esteve presente em qualquer festinha, minha ou de meus irmãos Eduardo e Evandro. Na separação ele teve a curiosa idéia de justificar sua partida dizendo que casado com a Alice ele vegetava. Pode se depreender daí que, no mínimo, ele não era muito habilidoso com as palavras. A separação foi dolorosa e desastrosa, nunca mais houve um encontro que não fosse marcado por palavras duras, ressentidas; embora ele mesmo nunca tenha sido capaz de um enfrentamento: sempre se calava ou esquivava numa desculpa qualquer.
            Pois o convidei e ele disse-me que iria. Alice mostrou-se desde o início reticente, ela conhecia bem o valor das palavras dele, e não tinha nenhuma dúvida: ele não iria. Como é seu costume, não escondeu-me sua opinião (não se é galego impunemente), e eu furioso, apostava que viria. Mas também, sem saber, já sabia que a Alice tinha razão.
            Por esta época desenvolvi o estranho gosto de comer cebolas inteiras, assim como se come uma maçã. Pegava a cebola e ia mastigando, tirando bocados até devorá-la toda. É preciso confessar que grande parte da satisfação neste petisco era a admiração que causava aos outros; tinha meus 15 minutos de fama.
            No dia da festa, a meninada chegando, os tios, os primos e cadê Adelino? Atrasado. Já começava certa pressão para cantar parabéns e eu não queria; o Adelino tinha que chegar. Catei uma cebola e dentadas nela, em pouco tempo, já estava pela metade; e a pressão para o parabéns aumentava e eu recusando. Não teve jeito, lembro apenas: eu atrás do batente da porta de entrada do apartamento, pelo lado de fora olhando pra sala cheia de crianças com seus olhos cobiçosos no bolo, desatei a chorar, cebola na boca, me encolhendo quanto podia, até que gentilmente cataram-me e empurraram-me pra perto do bolo até soprar as velas com borrifos de lágrimas.
            Vários anos depois, aos vinte anos, quando  visitei o Adelino em Goiânia, ele apresentou-me à sua sogra e aos meus meio irmãos, os filhos de seu segundo casamento, como sendo sobrinho dele e não como um filho, como deveria ter sido. 
            Nessa ocasião fiquei sabendo que ele detestava hálito de cebola; imediatamente lembrei-me de meu antigo estranho gosto. Hoje aos cincoenta, faço os cálculos e imagino que foi uma estratégia inteligente minha: afinal é melhor ser rejeitado pelo hálito de cebola que se pode evitar, do que por algo que é congênito e não se muda: o ser.
             E lembro-me bem da dor que me causou aquele aniversário. Ponderando que a dor maior não vinha de sua ausência, mas da palavra inconsistente e da expectativa frustrada que me causou, a humilhação de exibir minha crença e a dura realidade da palavra falhada.
             Mas é assim que quase todos fazemos: palavras em vão. Todos esquecidos que a palavra é a principal realidade.
            Eu tenho preferido dizer sempre a verdade, também causa dor, mas o outro tem pelo menos o amparo de saber-se na dimensão de um mundo conhecido, não no atoleiro de um pântano nebuloso em que mal se distinguem raízes de cobras.
            O Adelino morreu antes de completar seus 56 anos, um final doloroso; e imagino que maior dor foi, talvez, ele ter se dado conta, afinal, das dores que espalhou com suas palavras inconsistentes. Requiescat in pace...

 Aquarela e bico de pena sobre papel, 210 x 150 mm


Outras palavras

E não é que o Burro arranjou com quem conversar?

André diz:
"penso no cuidado e no valor preciso dos significados das palavras, as vezes é necessário inspira-las escutá-las para depois deixá-las viver. É difícil e muitas vezes necessário. Os poetas tem esta capacidade."  André
E o Burro comenta:
Conforme define Vilém Flusser, e eu concordo, o poeta é aquele que se atira aos abismos do nada ( também chamado de desconhecido, ou caos) e traz pedaços desse nada , que nomeia e torna parte da conversação. Claro, há os poetas que atirados não voltam mais, sucumbidos à loucura. Certo é que sempre os poetas causam algum terror, pois ao estabelecerem um mundo novo, desestabelecem o antigo , acostumado e repetido.

Leo diz:
Foi bom acordar da sonolência, embora um pouquinho amargo. Mas valeu e é gostoso porque você consegue fazer a gente sentir aquilo que lê.  Leo

O Burro comenta:
Obrigado Leo, por sua amável e cuidadosa atenção. E de fato, nem a ironia pode esconder o travo amargo, como da salsugem do mar.

Cunha diz:
Na festinha, que ele não foi, já era separado de Alice (no país das desventuras) com quem obviamente se casara. Então, se você tinha entre oito e 10 anos, ele deveria ter mais de vinte. Já que só agora você está escrevendo sobre ele, em alusão à sua (dele) morte (suponho), então ele deve ter morrido recentemente. Se não completou 56 anos e você tá com 50 ou mais, então ele seria no máximo seis anos mais velho que você? Então quando ele não foi na festa ele tinha entre 14 e 16 anos!!! E já era separado??? Mas o pior é que ele se separou de todos, e de Alice, quando você tinha quatro anos. Ou seja, entre seus oito e 10 anos, ele já era separado há quatro ou seis anos... E morreu neste ano com 56 e você tem 50 ou mais??? Acho melhor deixar isto prá lá...
Cunha

O Burro comenta:
Muitíssimo obrigado, suas palavras fizeram-me dobrar de rir. E é preciso coragem para atirar-se ao absurdo com tanta desenvoltura. Considerando a simples matemática, os cálculos são completamente sem sentido, e absurdos. Porém considerando a lógica do inconsciente, são cálculos maravilhosamente lúcidos e precisos; na verdade do inconsciente o tempo é todo ao mesmo tempo: eu tenho 50 e tenho dez, Adelino 14, ou vinte ou 56 e tudo pode ter sido ontem ou há 30 anos e não faz diferença. Apenas sua intuição não acertou ao apontar o evento causador do texto, que não foi a morte dele, mas uma de suas mentiras, de suas palavras falhadas e inconsistentes.


Fátima diz:


Querido Edilson, estou adorando o "burro que lê" (tão rico) e gostando muito de ver que você está se expressando, de certa forma "soltando" os grilos do passado, faz bem para a mente e o coração. Amei o fado, sublime!
segue um poema, uma alusão às festinhas infantis e famosa cebola (rsrs). Se for possível, favor publicar. .

Bjs, abraços e sucesso!
Fá (sua tia inteira)

ONTEM

Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.

De como este branco
não reteve forma,
cor ou lembrança.

Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.

Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.

                              Carlos Drummond de Andrade
                                       " A rosa do povo"

O Burro comenta:
Muito obrigado Fátima querida tia inteira. Adorei o poema do Drummond, que não conhecia. Aliás tenho que confessar que nunca fui um leitor muito atento nem assíduo de Drummond, o que é uma pena. Vou tentar me regenerar. Entretanto a leitura deste, fez ecoar outro de Emily Dickinson, que trata de memórias e acho maravilhoso, e segue abaixo:


That sacred Closet when you sweep –
Entitled "Memory" –
Select a reverential Broom
And do it silently.

'Twill be a Labor of surprise -
Besides Identity
Of other Interlocutors
A probability

August the Dust of that Domain –
Unchallenged - let it lie –
You cannot supersede itself
But it can silence you –



Ao varrer o sagrado desvão
Denominado Memória,
Escolhe uma vassoura reverente
E faz em silêncio o teu trabalho.

Será um labor de surpresas –
Além da própria identidade,
Outros interlocutores
São uma possibilidade.

Nesses domínios é nobre a poeira,
Deixa que repouse intocada –
Não tens como removê-la,
Mas ela pode silenciar-te.

                        Emily Dickinson

terça-feira, 20 de julho de 2010

O Burro na pescaria

O quadro abaixo foi pintado por Arthur Scovino, em tela previamente tratada com texturas em acrílico, mede aproximadamente o,70 x 1,0 m, tinta acrílica. Pode ser visto no Blog do autor: EXERCÍCIOS







Há para qualquer quadro, algumas possibilidades de leitura.
Pode-se procurar identificar as figuras representadas e suas relações numa narrativa.Outra possibilidade é privilegiar as marcas (ou elementos visuais que constituem a imagem) e decifrar as suas relações com possiveis representações, e aproximar-se de algo que talvez também possa ser chamado de narrativa. Esta segunda possibilidade de leitura é a que experimentamos aqui.
Comecemos por observar que a imagem estrutura-se em polaridades entre elementos duplos;  a primeira é a das cores, em que estabelece-se a contraposição das cores quentes contra as frias: as marcas no centro da imagem, que parecem ser as protagonistas, em tons de vermelho até amarelo: quentes , contra as do fundo que vão do azul ao verde: frias. Como os matizes , principalmente das figuras centrais, estão numa escala muito elevada, com grande brilho e intensidade, e a tendência das gamas do amarelo a vermelho é trazer a imagem para a frente, avançando e as do azul ao verde, ao contrário, recuam, isso induz à sensação de que os objetos centrais levitam, flutuando acima do fundo e destacados deste. Esta relação já estabelece uma primeira tensão, como se percebessemos que haverá uma divisão, que os elementos da dupla afastam-se entre si.
A outra dupla está constituida nos dois elementos mais notáveis do quadro: os dois círculos. 




Os dois círculos, por serem da classe de formas mais simples e imediatamente identificáveis, concentram muita energia e atraem soberanamente a atenção do olhar, tornando-se portanto os protagonistas por excelência da pintura. As formas, posições e cores estabelecem ao mesmo tempo relações de atração e repulsão entre os dois círculos; atraem-se pela analogia formal, pelas cores aproximadas e pela inserção quase no mesmo nível; repelem-se pela diferença de dimensões, e se as cores estão próximas, diferenciam-se, pois se o menor círculo está em vermelho mais escuro, com um ponto quase negro ao centro, tendendo portanto a contrair-se e afastar-se para o fundo, o círculo maior e mais claro, com a borda amarelada, torna-se muito mais expansivo e tende a aproximar-se para a frente. Este jogo estabelece uma fortíssima tensão entre essas energias conflitantes, entre aproximação e afastamento; se as formas e cores e posições os aproximam, as outras qualidades os afastam. Quem olha , portanto, fica como que preso esperando que o conflito se resolva.
Podemos ainda notar que a relação entre os dois circulos cria uma linha, não marcada, mas percebida, posicionada em diagonal que conduz o movimento do olhar nessa direção, no sentido ascendente e da esquerda para a direita, essa linha diagonal prossegue além dos dois circulos e apoia-se na linha formada pela margem entre a área verde acima e a azul abaixo. Esta linha por sua ligação aos dois circulos protagonistas, pode-se dizer que é a estrutura mais marcante da composição.
Entretanto ela é desafiada por uma outra diagonal, a seguir:


 


Esta diagonal inicia-se no canto superior esquerdo, segue pela margem formada entre as áreas verde e azul, atravessa entre os dois círculos e vai terminar no canto inferior direito, saindo do quadro. E apesar da força deste caminho para o deslocamento do olhar, ele não predomina, pois é equilibrado pela força da outra diagonal que já identificamos entre os dois círculos. Porém a luta entre esses dois elementos cria um novo e potente foco de tensão, mais uma vez prendendo o olhar que espera a resolução pacífica.
As relações que são notadas nos elementos que seguem, tendem não tanto a gerar tensões divisoras, mas unificadoras;




o círculo vermelho escuro identifica-se e une-se à área verde acima, pela complementaridade das cores (vermelho sendo complementar a verde). A distância e o espaço que há entre esses elementos propõem uma tensão que unifica, o verde e o vermelho atraem-se mutamente e as suas superfícies que estão afastadas unem-se por essa atração.




A mesma relação estabelece-se entre o círculo maior e o fundo em azul, a cor do círculo maior tendendo para o laranja atrai o fundo azul por sua condição de complementar (laranja complementar do azul).




Os elementos marcados aqui, funcionam como repetições mais ou menos gerais dos elementos centrais do quadro, fazem o papel de pequenos comentários, ao mesmo tempo que estabelecem uma relação ritmica e acrescentam graça pela leveza e movimento mais irrequieto.
Há muitos elementos que podem-se notar e analizar e que confirmam as tensões já notadas e que contribuem para gerar o interesse e a atração do olhar sobre o quadro.
Boa diversão...

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O burro lê a vida.

Criança, eu fazia funeral de passarinho , não só eu, também meus irmãos e alguns amigos. Fazíamos o caixãozinho com papelão, o ornamentávamos com os motivos fúnebres devidos, recolhíamos flores nos jardins e fazíamos o cortejo até a cova, sempre no jardim do prédio. Na verdade, se me lembro bem, nunca sepultamos nenhum passarinho, nunca tivemos um, mas sim aqueles pintinhos que comprávamos na feira, como brinquedos de criança e eles morriam muito rápido. Lembro de um que vi morrer: ele caído no chão, ainda arfando e eu tentando colocá-lo em pé, até que alguém adulto me convenceu que ele já estava morto.
Certa vez pedimos, a uma velha que morava numa casa vizinha, em cujo jardim havia flores, algumas para um enterro. Ela não deu, disse que aquilo era pecado, sepultar bicho.
Tive uma tartaruga, daquelas verdes e pequenas, que ganhei de minha tia. Um bicho que vivia pelos cantos do apartamento, escondida, muitas vezes dormindo sobre uma tomada elétrica que ficava no chão. Aí foi encontrada morta. Também teve cortejo e rico. Foi o evento mais interessante de sua existência entre nós.
A Alzira fabricava o caixão, em papel forrado com rendas brancas costuradas por dentro e por fora.
Eu marcava bem o local da sepultura e decorrido um tempo que julgava suficiente, tentava a exumação, queria encontrar o esqueleto com seus ossos limpinhos. O máximo que consegui alguma vez encontrar foi umas coisas que pareciam restos de penas sujas de terra que se desintegrou entre meus dedos ávidos de uma relíquia. Eram tão frágeis aqueles corpinhos.
Quando Alzira morreu, seu caixão foi um bem simples; uma estrutura de madeira forrada de tecidos roxo, quase lilás; era seu desejo, um caixão roxo, alguém lembrou. Flores dispostas em volta de seu corpo, creio que brancas. Seu rosto descoberto e sua face impassível, quase a mesma, a doença não fez muitos estragos em sua fisionomia. Um véu de tule recobria o corpo e uns mosquitinhos teimavam em tentar pousar ali.
Nunca fui cavar a sua sepultura pra encontrar seus ossos limpos, talvez tenha ficado a lembrança da infância de que nunca encontrávamos nada. Mas imagino a sua caveira com aqueles ossos largos, creio que reconheceria seu rosto.
A lembrar daquele corpo do pintinho estirado no chão, morrendo, penso agora, que não há mistério nenhum na morte, mistério mesmo é a vida, esta nega tudo o que é mais certo: a dissolução constante, o menor esforço.
SP, 14 de julho 2010

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Athenâ

Colagem . Diâmetro: 300mm.

Inspirada no texto de
Junito de Souza Brandão, do livro Mitologia Grega, Vol. II; pags. 31 a 33, da editora Vozes.
A seguir:
...

O perfil de Atená, como o de Zeus e o de Apolo, evoluiu consideravelmente no mito, de maneira constante e progressiva, no sen­tido de uma espiritualização.
Dois de seus atributos configuram os termos dessa evolução, a serpente e a ave (a coruja). Antiga Grande Mãe minóica, proveniente de cultos ctônios, domínios da serpente, elevou-se, com o sincretismo creto-micênico, a uma posição dominante nos cultos urânios e olím­picos, domínios da ave, como deusa da fecundidade e da sabedoria; virgem, protetora das crianças; guerreira, inspiradora das artes e da paz.
Seu nascimento foi como um jorro de luz sobre o cosmo, aurora de um mundo novo, atmosfera luminosa, semelhante à hierofania de uma divindade emergindo de uma montanha sagrada. Sua aparição marca um transtorno na história do mundo e da humanidade. Uma chuva de neve de ouro caiu sobre Atenas, quando de seu nascimento: neve e ouro, pureza e riqueza, tombando do céu com a dupla fun­ção de fecundar, como a chuva, e de iluminar, como o sol. E é, por isso mesmo, que em certas festas de Atená se ofereciam bolos em forma de serpente e de falo, símbolos da fertilidade e da fecun­didade.
Para relembrar o nascimento de Erictônio, o instituidor das Panatenéias, e que Atená escondera num cofre em companhia e sob a proteção de uma serpente, se oferecia aos recém-nascidos atenien­ses um amuleto representando uma pequena serpente, símbolo da sabedoria intuitiva e da vigilância protetora. Como "Palas Atená", ela é defensora, no sentido físico e espiritual, das alturas, das Acró­poles, em que se estabelece. A cabeça de Medusa colocada no centro de seu escudo é como um espelho da verdade, para combater seus adversários, petrificando-os de horror, ao contemplarem sua própria imagem. Foi graças a tal escudo que Perseu levou de vencida a terrível Górgona, mostrando assim que Atená é a deusa vitoriosa pela sabedoria, pelo engenho e pela verdade. Sua lança é uma arma de luz: separa, corta e fere, como o relâmpago rasga as nuvens. A proteção concedida a heróis como Aquiles, Héracles, Perseu e Ulisses simboliza a injeção do espírito na força bruta, com a consequente transformação da personalidade do herói.
Deusa da fecundidade, deusa da vitória e deusa da sabedoria, Atená simboliza mais que tudo a criação psíquica, a síntese por re­flexão, a inteligência socializada.
A coruja, em grego (gláuks), etimologicamente, "brilhan­te, cintilante", porque enxerga nas trevas; em latim noctua, "ave da noite", era, como se viu, consagrada a Atená. Ave noturna, relacio­nada, pois, com a lua, a coruja não suporta a luz do sol, opondo-se, desse modo, à águia, que a recebe de olhos abertos. Deduz-se, daí, que o mocho, em relação a Atená, é o símbolo do conhecimento racional com a percepção da luz lunar por reflexo, opondo-se, des­tarte, ao conhecimento intuitivo com a percepção direta da luz solar. Explica-se talvez, assim, o fato de ser a coruja um atributo tradicio­nal dos mânteis, dos adivinhos, simbolizando-lhes o dom da clarivi­dência, mas através de sinais que os mesmos interpretam. Noctua, ave das trevas, ctônia portanto, a coruja é uma excelente conhecedora dos segredos da noite. Enquanto os homens dormem, ela fica de olhos abertos, bebendo os raios da lua, sua inspiradora. Vigiando os cemitérios ou atenta aos cochichos da noite, essa núncia das trevas sabe tudo o que se passa, tendo-se tornado em muitas culturas uma poderosa auxiliar da mantéia, da mântica, da arte de adivinhar. Daí a tradição segundo a qual quem come carne de coruja participa de seus poderes divinatórios, de seus dons de previsão e presciência. Eis aí por que, no Antigo Testamento, Javé, certamente com o fito de banir a superstição, proibia comer carne de mocho: e (não comais) todo o género de corvos, e o avestruz, e a coruja. . . (Dt 14,14-15).
No mito grego a coruja é representada por Ascáfalo, que, tendo denunciado a Perséfone, foi transformado em mocho.4
Para os Astecas, a coruja configura o deus dos infernos, repre­sentada como a guardiã da morada obscura das entranhas da terra. Associada às potências ctônias, é um avatar da chuva, das tempes­tades e da noite.
No rico material funerário descoberto no Peru, nas tumbas da civilização pré-incaica Chimu, se encontra, com frequência, a repre­sentação de um cutelo de sacrifício, em forma de meia-lua, encimado por uma divindade semi-humana e semipássaro, indubitavelmente uma coruja. Este ícone, ligado à idéia de sacrifício e de morte, está adornado com colares de pérolas e de conchas marinhas, o peito co­lorido de vermelho e cercado, não raro, por dois cães, cuja signifi­cação psicopompa é bem conhecida. Até hoje, aliás, o mocho é uma divindade da morte e guardião de cemitérios em numerosas culturas índio-americanas.
Mas, já que os mortos governam as sementes, que alimentam os vivos, a coruja é um símbolo digno de uma deusa também da vegetação.

4. Ascáfalo era filho de uma ninfa do rio Estige e de Aqueronte. Estava presente no Jardim do Hades, quando, coagida por Plutão, Perséfone comeu um grão de romã, cortando-lhe toda e qualquer esperança de retorno ao mundo da luz. Como Ascáfalo presenciara a quebra de jejum por parte de Perséfone, denunciou-a. Em sua cólera, Deméter o transformou em coruja. Ver o mito de Deméter e Perséfone, Vol. I, p. 283-310.
...

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Monteiro Lobato


Li Monteiro Lobato na infância, muito de sua obra para crianças, coisas do Sítio do Pica Pau Amarelo. E nunca ouvira falar de sua obra para adultos. 
Passado muito tempo e já adulto , por acaso tomei contato com um de seus contos, da coleção de Cidades Mortas, que foi o “Um Homem de Consciência” , depois descobri num sebo um exemplar de um Urupês, caindo aos pedaços e outro de uma coletânea de suas cartas. 
Volta e meia abro com extremo cuidado meu Urupês e avanço com delícia sobre os contos. Deste “O Luzeiro Agrícola”, da frase:" _ A Posteridade me vingará, javardos!"  saiu a inspiração para o nome de meu primeiro blog, ainda em cartaz, o Aos Pósteros .

Pois sempre fico imaginando como gostaria de objurgar esta frase por aí de vez em quando. Me divirto muito pensando-me um quase Dom Quixote e bastante ridículo.
Monteiro Lobato ainda é muito lembrado por sua literatura para infância, mas encontrei quase ninguém que soubesse de seus contos adultos. Dizem que aquela crítica que fez à pintura de Anita Malfatti o teria feito cair em desgraça com a posteridade. Talvez... Parece-me entretanto que se trata de outra coisa: Ainda escrevendo para adultos Lobato parece a Emília, cruel, terrível mas perfeitamente compreensível para as crianças e nada para os adultos, esses que esqueceram sua criança no tempo de outrora.
Aí está este conto O Luzeiro Agrícola, de 1910, e ainda muito parecido com hoje. Pois se for preciso, encarne-se de criança e divirta-se a valer.
Bom proveito



O luzeiro agrícola
Sizenando Capistrano é o inspetor agrícola do vigésimo distrito. Incumbe-lhe fomentar a pecuária, elaborar relatórios, ensinar o uso de máquinas agrícolas, preconizar a policultura, combater a rotina e ao fim de cada mês perceber na coletoria a realidade de setecentos mil réis.
Antes de inspetor Capistrano fora poeta. Cultivara as musas. Não sabia que coisa era um pé de café, mas entendia de pés métricos, pés quebrados e fazia pé d'alferes a todas as divas do Parnaso. Tal cultura, entretanto, emagrecia-o. A sua produção de hendecassilabos, alexandrinos, quadras, odes, sonetos, poemas, vilancetes, eglogas, sátiras, anagramas, logogrifos, charadas elétricas e enigmas pitorescos, conquanto copiosa, não lhe dava pão para a boca, nem cigarro para o vício. A palidez de Capistrano, sua cabeleira à Alcides Maia, sua magreza à Fagundes Varela, seu spleen à Lord Byron e suas atitudes fatais, ao invés de lhe aureolarem a face dos nimbos da poesia, comiseravam o burguês, que, ao vê-lo deslisar como alma penada pelas ruas, horas mortas, de mãos no bolso e olho nostalgicamente ferrado na lua, murmurava condoído:
— Não é poesia, não, coitado, é fome...
O editor artilhava a cara de carrancas más quando Ca­pistrano lhe surgia escritório a dentro com a maçaroca de versos candidatos a edição.
— São versos puros, senhor, versos sentidos, cheios d'alma. Virão enriquecer o patrimônio lírico da humanidade.
— E arruinar o meu patrimônio econômico, retorquia a fera. De lirismo bastam-me aquelas prateleiras que editei no tempo em que era tolo e que se não vendem nem a peso.
— Ó vil metal! murmurava o poeta, franzindo os lábios num repuxo de supremo enojo. O' mundo vil! O' torpe hu­manidade! Em que te distingues, Homem, rei grotesco da criação, do suíno toucinhento que espapaça nos lameiros? Ma­nes de Juvenal! Eumenides! Musas de Cólera! Inspirai-me versos candentes com que cauterise até aos penetrais da alma este verme orgulhoso e mesquinho! Baudelaire, dá-me os teus venenos...
— Rapazes. berrava o livreiro á caixerada, ponham-me este vate no olho da rua!
Ante o manu-mliitari irretorquível, o poeta apanhava a papelada lírica e moscava-se para a zona neutra do passeio, onde, readquirida a altivez ossianica, objurgava para dentro da loja hostil:
_ A Posteridade me vingará, javardos!
E sacudia à porta do editor o pó das suas sandálias, que no caso eram surradas e já risonhas botinas de bezerro. Em seguida, remessando para trás a cabeleira, num repelão, ia fincar-se sinistramente á esquina próxima, em torva atitude. á espera dum conhecido esfaqueável a quem, com gestos soberbos á Cyrano de Bergerac. extorquisse um níquel.
Cansado. entretanto, de ouvir estrelas em jejum, de amar a lua no céu sem possuir um queijo na terra, acatou a voz do estômago e quebrou a lira — para viver. Meteu a tesoura nas melenas, deu brilho aos sapatos, desfatalizou o semblante, substituiu o ar absorto e vago do aédo pelo ar avacalhado do pretendente, e á força de pistolões guindou-se ás cumeadas do Morro da Graça. (Residência do general Pinheiro Machado, o mandão da política na época.) Todo mundo o recomendou ao Gaúcho Onipotente, porque todos andavam fartos daquela perpetua fome lírica a deambular pelas ruas, caçando rimas e filando cigarros. Que fosse acarrapatar-se ao Estado. O Estado é boi gordo, semelhante àquela estatua eqüestre de Hindenburg, feita de madeira, em que os alemães pregavam pregos de ouro. A diferença está em que no Estado, em vez de tachas de ouro, pregam-se Capistranos vivos.
Foi apresentado ao Pinheiro.
— Então, menino, que quer?
— Um empreguinho qualquer que Vossa Onipotência haja por bem conceder-me.
— E para que presta você, menino?
— Eu? Eu... fui poeta. Cantei o Amor, a Mulher, a Beleza, as manhãs cor de rosa. as auroras boreais, a natureza enfim. Romântico, embriaguei-me na Taverna de Hugo. Clássico, bebi o mel do Himeto pela taça de Anacreonte. Evo­luído para o parnasianismo, burilei mármores de Paros com os cinzeis de Heredia. Quando quebrei a lira, estava ascendendo ao cubismo transcendental. Sim, general, sou um gênio incompreendido, novo Asverus a percorrer todas as regiões do ideal em busca da Forma Perfeita. Qual Prometeu, vivi atado ao potro do Inania Veria, onde me roeu o Abutre da Perfeição Suprema. Fui um Torturado da Forma...
O general, que era amigo das belas imagens, iluminou o rosto de um sorriso promissor.
— Poeta, disse ele, eu também sou poeta. Rimo homens. Componho poemas heroi-comicos. Conheces a Hermeida? E' obra minha. Amo as belas imagens e tenho lançado algumas imortais. "A mulher de César"! "Os levitas do Alcorão"! Hein? Tu me caiste em graças e, pois, acolho-te sob o meu palio. Que queres ser?
— Inspetor.
— ... de quarteirão ?
— Isso não.
— Agrícola?
— Ou avícola...
— De que região?
— Não faço questão.
— Se-lo-ás do vigésimo distrito. Conheces as culturas rurais?
— Já cultivei batatas gramaticais.
__ E de pecuária, entendes? Distingues um zebú dum galo Brama? um pampa dum morzelo?
— Já cavalguei Pegaso em pêlo!
— Conheces a suinocultura ? Sabes como se cria o canastrão ?
— Sei trinca-lo com tutu de feijão.
— És um gênio, não ha que ver. Talvez faça de ti, um dia, presidente da Republica. Teu nome?
— Sizenando. Capistrano é sobrenome.
— Cá me fica. Vai, que estás aí, estás fomentando a .agricultura como inspetor do vigésimo distrito, com setecentos bagos por mês. Os poetas dão ótimos inspetores agrícolas e tu tens dedo para a coisa. Vai, levita do Ideal...

II

Sizenando Capistrano, mal se pilhou tranformado de famelico ouvidor de estrelas em peça mestra do Ministério da Agricultura... casou, luademelou três meses e ao cabo com­pareceu perante o ministro para saber em que rumos nortear a sua atividade.
O ministro franziu a testa: é tão difícil dar ocupação aos fósforos ministeriais... Pensou um bocado e,
— Escreva um relatório, sugeriu.
— Sobre que, Excia.?
— Sobre qualquer coisa. Relate, vá relatando. A fun­ção capital do nosso ministério é produzir relatórios de ar­romba sobre o que ha e o que não ha. Relate.
— Mas, Excia., eu desejava ao menos uma sugestãozinha emanada do alto critério de V. Excia. sobre o tema do rela­tório que a bem da lavoura V. Excia., com tanto descortino, me incumbe de escrever...
— Já disse: sobre qualquer coisa que lhe dê na veneta. Relate, vá relatando e depois apareça.
Sizenando saiu tonto com os processos expeditos do dr. Grifado ( Um ministro da Agricultura da época que não era dou­tor mas não protestava contra o tratamento.) com assento na pasta, e passou três meses de papo ao ar, procurando uma tese conveniente. Como por essa época a lua de mel lhe entrasse em plena mingoante, houve certo dia rusga brava ao jantar, e a consorte, mulherzinha de pêlo crespo no nariz, pespegou-lhe pela cara com um prato de salada de beldroega. Tal o celebre estalo que abriu a inteligência do padre Antônio Vieira em menino, aquele obuz culinário teve a estranha ação de iluminar os refolhos cerebrais do inspetor.
— Eureka! berrou ele radiante. E com um grande riso de gozo na cara emplastada de verdura, ergueu-se precipita­damente da mesa e correu ao escritório. A mulherzinha, en­tre colérica e pasmada, perguntava de si para si:
— Estará louco ?
Sizenando deitou mãos á tarefa e levou a cabo um estudo botânico-industrial da beldroega, com afã tal que, transcorri­dos dez meses, dava a prelo o Relatório sobre o Papalvum brasiliensis. vulgo Beldroega, e sua aplicação na culinária.
O ano seguinte gastou-o em rever as provas do calhamaço, a modo de escoima-lo dos mínimos vícios de linguagem. O antigo torturado da Forma ressurtia ali... Saiu obra papafina, em ótimo papei e com muitas gravuras elucidativas. Entre estas, em belo destaque, os retratos do Ministro e do Diretor da Agricultura, do Marechal Hermes, do tenente Pulquerio, do Frontín, do Pinheiro e mais protuberantes beldroegas do momento. Pronta a edição, embaraçou-se Sizenando quanto ao destino a dar-lhe. Que fazer de tanta beldroega?
Foi ao ministro.
— Excelência! De acordo com as sabias ordens de V. Excia., venho comunicar a V. Excia. que se acha pronta a edição do relatório sobre o Papalvum.
— Que papalvo? Que relatório? inquiriu o ministro,
deslembrado.
— O que V. Excia., me incumbiu de escrever.
— Quando?
— Haverá dois anos.
— Não me recordo, mas é o mesmo. Mande a papelada para o forno de incineração da Casa da Moeda.
Sizenando abriu a maior boca deste mundo. Compreen­dendo aquela estuporação, o ministro sorriu.
— Então? Que queria que eu fizesse de cinco mil exemplares de um relatório sobre a Beldroega? Que o pusesse á venda? Ninguém o compraria. Que o distribuísse grátis? Ninguém o aceitaria. Se é assim, se sempre foi assim, se sempre será assim com todas as publicações deste Ministério, o mais pratico é passar a edição diretamente da tipografia ao forno. Isso evitará a maçada de nos preocuparmos com ela e de a termos por aí a atravancar os arquivos. Não acha V. que é o mais razoável? Retire os que quiser e forno com o resto.
__ E depois que devo fazer? indagou Sizenando, ainda tonto do expeditismo ministerial.
— Escrever outro relatório, respondeu sem vacilar o ministro.
— Para ser queimado novamente,? atreveu-se a mur­murar o poeta-inspetor.
— Está claro, homem! Para que diabo dispendeu o go­verno tanto dinheiro na montagem do forno? Está claro que para incinerar as notas velhas e os relatórios novos. Deste modo se conservam em perpetua atividade o pessoal da Im­prensa, o do Forno e o dos Ministérios. Veja como é sabia a nossa organização administrativa! A montagem do forno foi a melhor idéia do governo passado. Antes dele a Imprensa Nacional vivia entulhada de impressos; a produção de rela­tórios, função capital deste Ministério, periclitava; e era tudo uma desordem, um desequilibrio capaz de induzir o governo á supressão da Imprensa e do meu Ministério. O forno sa­nou a situação. O fervet opus é magnífico e a espada de Damocles está para sempre arredada de nossas cabeças. Hein? Vá. Escreva outro relatório, sobre... sobre... o carurú, por exemplo.
Sizenando deixou o gabinete do ministro profundamente meditativo. S. Excia. derrancara-o!
Viu com dor d'alma as chamas do Forno lerem aquele relatório tão bem acabadinho, tão de encher o olho... E sacou seis meses de licença com vencimentos para descansar.
Esgotada a licença, ia Sizenando começar a pensar em preparar-se para escolher o papel e a tinta com que relatasse o carurú, quando a política apeou da administrança o Dr. Grifado. Sizenando deixou que transcorressem mais seis meses, ao termo dos quais se apresentou ao novo ministro para lhe sondar a orientação.
O novo ministro era um bacharel em ciências jurídicas e sociais, ex-chefe de policia e tão entendido em agricultura como em arqueologia inca. Mas lera uns números das Chá­caras e Quintais e ali se abeberara de umas tantas noções sobre avicultura, policultura, apicultura, criação de canários, etc. Fez dessas uras o seu programa. No discurso de apresentação, ao empossar-se no cargo, emitiu os seguintes conceitos, louvadíssimos pelos circunstantes, empregados no Ministério quase todos e verdadeiras hortaliças em matéria agrícola.
— "A monocultura, senhores, é o grande mal; a policul­tura é o grande bem; no dia em que produzirmos cebola, alho, batata, repolho, coentro, alpiste, alfafa, cerefolio, grão de bico, tremoço, quiabo, espargo, espinafre, alcachofra..."
(Um arrepio de entusiasmo percorreu a espinha dos assis­tentes , os quais se entreolharam gozosos, como quem diz: Temos homem pela proa!)
— "... cebolinho, couve-flor, sorgo, soja amarela, centeio, aveia, figos da Tracia. uvas de Corinto, violetas de Parma..."
— "Bravíssimo!"
— "... violetas de Parma... e outros cereais europeus (vermelhidão no rosto), a prosperidade nacional se assentará num solo basaltico, do qual não a arrancarão as mais rijas lufadas dos vendavais econômicos. Conduzir a pátria a essa Canaã da policultura: eis a mira permanente dos meus esfor­ços, eis o meu programa, eis o fim supremo colimado pela minha atividade. Espero, pois, que, etc., etc.''
Palmas, bravos, guinchos, silvos e outros sons denunciadores de entusiasmo em grau de ebulição estrugiram pela sala. O ministro foi abraçado e beijado — nas mãos. Aquele salvaria a pátria, não havia a menor duvida!
O novo ministro da Agricultura era positivamente uma águia — igual ás anteriores. Tinha programa. Visava con­fundir a rotina monocultura com demonstrações práticas das magnificências da policultura mecânica.
Sizenando recebeu ordem de ir desatolar a vigésima região do atascal da rotina. Aquela gente ainda vivia em pleno pe­ríodo da pedra lascada do café; era mister tange-la à estação áurea da policultura, da avicultura, da sericultura, da criação de canários hamburgueses, etc., preluzida no discurso do ministro.
Chegando à sede do distrito, com séquito numeroso e abun­dante farragem mecânica, Sizenando distribuiu convites para a inaguração dum curso prático. Escolheu para campo de demonstração um "rapador" a um quilômetro da cidade, e lá, no dia emprazado, reuniu os convivas. Veio o prefeito muni­cipal, o porteiro da Câmara, o coletor federal, o promotor público, três jornalistas, quatro professores, o diretor do grupo escolar com a meninada, o vigário da paroquia, o fiscal da iluminação publica, o zelador do cemitério, o carcereiro, dois guardas-chaves da Central, cinco inspetores de quarteirão, o delegado, o cabo do destacamento — e um fazendeiro recém-despojado da sua propriedade por dívidas. A turma docente e os bois do arado formavam grupo á parte.
Sizenando trepou a um cupim e pronunciou breve alocução alusiva à personalidade sobrexcelente do ministro, e ao papel dos novos métodos racionais na agricultura moderna.
— O novo método, meus senhores, é baseado na ciência pura. Vem dos laboratórios de braços dados á química. Começarei pela demonstração do arado, ou charrua, a pedra angular de todo progresso agrícola. Senhor Primeiro Arador, arado para a frente!
Despegou-se da turma um capataz, que empurrou para perto do cupim tribunício um belo arado de disco. Rodea­ram-no os circunstantes, como a um animal raro.
— Eis, meus senhores, um arado de disco. Esta parte se chama cabo; esta é a roda, serve para rodar; estas rodelas são os discos, servem para sulcar a terra; este ferrinho é a manivela graduadora; este pauzinho é o balancim. Aqui se atrelam os bois e cá toma assento o condutor.
Explicou depois o seu funcionamento.
— Vejamo-lo agora em ação. Senhor Primeiro Condutor de Primeira Classe, atrelar!
Adiantou-se da turma um carreiro e tangeu os bois para a máquina, jungindo-os à canga. Os assistentes riram-se. Acharam imensa graça no Tomé Pichorra, que nunca fora senão o Tomé Pichorra, carreiro, transformado em Primeiro Condutor de Primeira Classe! Era de primeiríssima.
— Senhor Primeiro Arador, arar!
O Primeiro Arador saltou à boleia e empunhou as manivelas. O Primeiro Condutor aguilhoou a junta de bois.
—'amo, Bordado! Puxa, Malhado!
Os dois caracús moveram-se pesadamente. A terra, sulcada pelo ferro, abriu-se em leivas. Sizenando exultou.
— Vejam, senhores, que maravilha! Faz o trabalho de vinte homens, além de que deixa a terra desatada, com grande receptividade para a meteorização atmosférica, o que eqüivale a um adubamento copioso.
Este pedacinho encantou sobremodo ao zelador do cemi­tério, o qual não conteve um sincero Muito bem!
Sizenando agradeceu com um gesto de cabeça. O arado deu umas tantas voltas e emperrou. A banda de musica para disfarçar a entaladela, requebrou o Vem cá, mulata. E assim terminou a primeira parte da bela demonstração agrícola.
A segunda parte foi o destorroamento e o gradeamento da terra, feitos com o mesmo luxuoso aparato. Havia Pri­meiro e Segundo Destorroador, Primeiro e Segundo Gradeador. Um mimo de hierarquia!
Ao terminar o serviço, a banda zabumbou um tanguinho.
A terceira parte foi absorvida pelo plantio de cebolas, ba­tatas, alho, alfafa e outras salvações nacionais.
— Os senhores verão, concluiu Sizenando, que maravi­lhosa mésse vai brotar, farta, deste torrão sáfaro e ingrato só porque aplicamos sumariamente os processos modernos da cultura racional, os quais centuplicam a produção e diminuem o trabalho. A máquina agrícola é a verdadeira alavanca do progresso!
— Protesto! A alavanca do progresso sempre foi a im­prensa, contraveio um jornalista, cioso da velha prerrogativa.
— Será, retrucou Sizenando; mas se uma. a imprensa, alçaprema o progresso moral, a outra, a máquina agrícola, alçaprema o progresso econômico!
— Bravissimo! rugiu o zelador do cemitério, inimigo pessoal do Zé Tesoura. Isto é que é!
— Sim, senhor, muito bem! grunhiram outros.
Rubro de gozo pelo feliz sucesso da tirada, Capistrano espichou o dedo para a filarmônica, a pedir o hino nacional.
Desbarretaram-se todos. Erecto sobre o pedestal de cupim, Capistrano imobilizou-se em atitude de religiosa unção, d'olhos fixos no futuro da pátria. E à derradeira nota pôs fim à festa com um escarlate viva à Republica com três "erres".
Acompanharam-no, como um eco, o coletor, o zelador do cemitério, o agente do correio e os funcionários federais demissíveis, além dos bois, que mugiram.
...
Meses mais tarde procedeu-se à colheita. As cebolas haviam apodrecido na terra, devido às chuvas; os alhos vieram sem dentes, devido ao sol; as batatas não foram por diante, devido às saúvas, à quenquem, à geada, a isto e mais aquilo.
Não obstante, seguiu para o Rio um soporoso relatório de trezentas paginas onde Capistrano, entre outras maravi­lhas, notava: "Os resultados práticos do nosso método de­monstrativo in loco têm sido verdadeiramente assombrosos! Os lavradores acodem em massa às lições, aplaudem-nas com delírio e, de volta às suas terras, lançam-se com furor à cultura poli, em tão boa hora lembrada pelo claro espirito de V. Excia. O Senhor Ministro pode felicitar-se de ter aberto de par em par as portas da idade de ouro da agricultura nacional".
Os jornais transcreveram com gabos estes e outros peda­cinhos de ouro. E muita gente se encheu de mais um bocado de ufania por este nosso maravilhoso país.
1910
Monteiro Lobato