segunda-feira, 7 de junho de 2010

Monteiro Lobato


Li Monteiro Lobato na infância, muito de sua obra para crianças, coisas do Sítio do Pica Pau Amarelo. E nunca ouvira falar de sua obra para adultos. 
Passado muito tempo e já adulto , por acaso tomei contato com um de seus contos, da coleção de Cidades Mortas, que foi o “Um Homem de Consciência” , depois descobri num sebo um exemplar de um Urupês, caindo aos pedaços e outro de uma coletânea de suas cartas. 
Volta e meia abro com extremo cuidado meu Urupês e avanço com delícia sobre os contos. Deste “O Luzeiro Agrícola”, da frase:" _ A Posteridade me vingará, javardos!"  saiu a inspiração para o nome de meu primeiro blog, ainda em cartaz, o Aos Pósteros .

Pois sempre fico imaginando como gostaria de objurgar esta frase por aí de vez em quando. Me divirto muito pensando-me um quase Dom Quixote e bastante ridículo.
Monteiro Lobato ainda é muito lembrado por sua literatura para infância, mas encontrei quase ninguém que soubesse de seus contos adultos. Dizem que aquela crítica que fez à pintura de Anita Malfatti o teria feito cair em desgraça com a posteridade. Talvez... Parece-me entretanto que se trata de outra coisa: Ainda escrevendo para adultos Lobato parece a Emília, cruel, terrível mas perfeitamente compreensível para as crianças e nada para os adultos, esses que esqueceram sua criança no tempo de outrora.
Aí está este conto O Luzeiro Agrícola, de 1910, e ainda muito parecido com hoje. Pois se for preciso, encarne-se de criança e divirta-se a valer.
Bom proveito



O luzeiro agrícola
Sizenando Capistrano é o inspetor agrícola do vigésimo distrito. Incumbe-lhe fomentar a pecuária, elaborar relatórios, ensinar o uso de máquinas agrícolas, preconizar a policultura, combater a rotina e ao fim de cada mês perceber na coletoria a realidade de setecentos mil réis.
Antes de inspetor Capistrano fora poeta. Cultivara as musas. Não sabia que coisa era um pé de café, mas entendia de pés métricos, pés quebrados e fazia pé d'alferes a todas as divas do Parnaso. Tal cultura, entretanto, emagrecia-o. A sua produção de hendecassilabos, alexandrinos, quadras, odes, sonetos, poemas, vilancetes, eglogas, sátiras, anagramas, logogrifos, charadas elétricas e enigmas pitorescos, conquanto copiosa, não lhe dava pão para a boca, nem cigarro para o vício. A palidez de Capistrano, sua cabeleira à Alcides Maia, sua magreza à Fagundes Varela, seu spleen à Lord Byron e suas atitudes fatais, ao invés de lhe aureolarem a face dos nimbos da poesia, comiseravam o burguês, que, ao vê-lo deslisar como alma penada pelas ruas, horas mortas, de mãos no bolso e olho nostalgicamente ferrado na lua, murmurava condoído:
— Não é poesia, não, coitado, é fome...
O editor artilhava a cara de carrancas más quando Ca­pistrano lhe surgia escritório a dentro com a maçaroca de versos candidatos a edição.
— São versos puros, senhor, versos sentidos, cheios d'alma. Virão enriquecer o patrimônio lírico da humanidade.
— E arruinar o meu patrimônio econômico, retorquia a fera. De lirismo bastam-me aquelas prateleiras que editei no tempo em que era tolo e que se não vendem nem a peso.
— Ó vil metal! murmurava o poeta, franzindo os lábios num repuxo de supremo enojo. O' mundo vil! O' torpe hu­manidade! Em que te distingues, Homem, rei grotesco da criação, do suíno toucinhento que espapaça nos lameiros? Ma­nes de Juvenal! Eumenides! Musas de Cólera! Inspirai-me versos candentes com que cauterise até aos penetrais da alma este verme orgulhoso e mesquinho! Baudelaire, dá-me os teus venenos...
— Rapazes. berrava o livreiro á caixerada, ponham-me este vate no olho da rua!
Ante o manu-mliitari irretorquível, o poeta apanhava a papelada lírica e moscava-se para a zona neutra do passeio, onde, readquirida a altivez ossianica, objurgava para dentro da loja hostil:
_ A Posteridade me vingará, javardos!
E sacudia à porta do editor o pó das suas sandálias, que no caso eram surradas e já risonhas botinas de bezerro. Em seguida, remessando para trás a cabeleira, num repelão, ia fincar-se sinistramente á esquina próxima, em torva atitude. á espera dum conhecido esfaqueável a quem, com gestos soberbos á Cyrano de Bergerac. extorquisse um níquel.
Cansado. entretanto, de ouvir estrelas em jejum, de amar a lua no céu sem possuir um queijo na terra, acatou a voz do estômago e quebrou a lira — para viver. Meteu a tesoura nas melenas, deu brilho aos sapatos, desfatalizou o semblante, substituiu o ar absorto e vago do aédo pelo ar avacalhado do pretendente, e á força de pistolões guindou-se ás cumeadas do Morro da Graça. (Residência do general Pinheiro Machado, o mandão da política na época.) Todo mundo o recomendou ao Gaúcho Onipotente, porque todos andavam fartos daquela perpetua fome lírica a deambular pelas ruas, caçando rimas e filando cigarros. Que fosse acarrapatar-se ao Estado. O Estado é boi gordo, semelhante àquela estatua eqüestre de Hindenburg, feita de madeira, em que os alemães pregavam pregos de ouro. A diferença está em que no Estado, em vez de tachas de ouro, pregam-se Capistranos vivos.
Foi apresentado ao Pinheiro.
— Então, menino, que quer?
— Um empreguinho qualquer que Vossa Onipotência haja por bem conceder-me.
— E para que presta você, menino?
— Eu? Eu... fui poeta. Cantei o Amor, a Mulher, a Beleza, as manhãs cor de rosa. as auroras boreais, a natureza enfim. Romântico, embriaguei-me na Taverna de Hugo. Clássico, bebi o mel do Himeto pela taça de Anacreonte. Evo­luído para o parnasianismo, burilei mármores de Paros com os cinzeis de Heredia. Quando quebrei a lira, estava ascendendo ao cubismo transcendental. Sim, general, sou um gênio incompreendido, novo Asverus a percorrer todas as regiões do ideal em busca da Forma Perfeita. Qual Prometeu, vivi atado ao potro do Inania Veria, onde me roeu o Abutre da Perfeição Suprema. Fui um Torturado da Forma...
O general, que era amigo das belas imagens, iluminou o rosto de um sorriso promissor.
— Poeta, disse ele, eu também sou poeta. Rimo homens. Componho poemas heroi-comicos. Conheces a Hermeida? E' obra minha. Amo as belas imagens e tenho lançado algumas imortais. "A mulher de César"! "Os levitas do Alcorão"! Hein? Tu me caiste em graças e, pois, acolho-te sob o meu palio. Que queres ser?
— Inspetor.
— ... de quarteirão ?
— Isso não.
— Agrícola?
— Ou avícola...
— De que região?
— Não faço questão.
— Se-lo-ás do vigésimo distrito. Conheces as culturas rurais?
— Já cultivei batatas gramaticais.
__ E de pecuária, entendes? Distingues um zebú dum galo Brama? um pampa dum morzelo?
— Já cavalguei Pegaso em pêlo!
— Conheces a suinocultura ? Sabes como se cria o canastrão ?
— Sei trinca-lo com tutu de feijão.
— És um gênio, não ha que ver. Talvez faça de ti, um dia, presidente da Republica. Teu nome?
— Sizenando. Capistrano é sobrenome.
— Cá me fica. Vai, que estás aí, estás fomentando a .agricultura como inspetor do vigésimo distrito, com setecentos bagos por mês. Os poetas dão ótimos inspetores agrícolas e tu tens dedo para a coisa. Vai, levita do Ideal...

II

Sizenando Capistrano, mal se pilhou tranformado de famelico ouvidor de estrelas em peça mestra do Ministério da Agricultura... casou, luademelou três meses e ao cabo com­pareceu perante o ministro para saber em que rumos nortear a sua atividade.
O ministro franziu a testa: é tão difícil dar ocupação aos fósforos ministeriais... Pensou um bocado e,
— Escreva um relatório, sugeriu.
— Sobre que, Excia.?
— Sobre qualquer coisa. Relate, vá relatando. A fun­ção capital do nosso ministério é produzir relatórios de ar­romba sobre o que ha e o que não ha. Relate.
— Mas, Excia., eu desejava ao menos uma sugestãozinha emanada do alto critério de V. Excia. sobre o tema do rela­tório que a bem da lavoura V. Excia., com tanto descortino, me incumbe de escrever...
— Já disse: sobre qualquer coisa que lhe dê na veneta. Relate, vá relatando e depois apareça.
Sizenando saiu tonto com os processos expeditos do dr. Grifado ( Um ministro da Agricultura da época que não era dou­tor mas não protestava contra o tratamento.) com assento na pasta, e passou três meses de papo ao ar, procurando uma tese conveniente. Como por essa época a lua de mel lhe entrasse em plena mingoante, houve certo dia rusga brava ao jantar, e a consorte, mulherzinha de pêlo crespo no nariz, pespegou-lhe pela cara com um prato de salada de beldroega. Tal o celebre estalo que abriu a inteligência do padre Antônio Vieira em menino, aquele obuz culinário teve a estranha ação de iluminar os refolhos cerebrais do inspetor.
— Eureka! berrou ele radiante. E com um grande riso de gozo na cara emplastada de verdura, ergueu-se precipita­damente da mesa e correu ao escritório. A mulherzinha, en­tre colérica e pasmada, perguntava de si para si:
— Estará louco ?
Sizenando deitou mãos á tarefa e levou a cabo um estudo botânico-industrial da beldroega, com afã tal que, transcorri­dos dez meses, dava a prelo o Relatório sobre o Papalvum brasiliensis. vulgo Beldroega, e sua aplicação na culinária.
O ano seguinte gastou-o em rever as provas do calhamaço, a modo de escoima-lo dos mínimos vícios de linguagem. O antigo torturado da Forma ressurtia ali... Saiu obra papafina, em ótimo papei e com muitas gravuras elucidativas. Entre estas, em belo destaque, os retratos do Ministro e do Diretor da Agricultura, do Marechal Hermes, do tenente Pulquerio, do Frontín, do Pinheiro e mais protuberantes beldroegas do momento. Pronta a edição, embaraçou-se Sizenando quanto ao destino a dar-lhe. Que fazer de tanta beldroega?
Foi ao ministro.
— Excelência! De acordo com as sabias ordens de V. Excia., venho comunicar a V. Excia. que se acha pronta a edição do relatório sobre o Papalvum.
— Que papalvo? Que relatório? inquiriu o ministro,
deslembrado.
— O que V. Excia., me incumbiu de escrever.
— Quando?
— Haverá dois anos.
— Não me recordo, mas é o mesmo. Mande a papelada para o forno de incineração da Casa da Moeda.
Sizenando abriu a maior boca deste mundo. Compreen­dendo aquela estuporação, o ministro sorriu.
— Então? Que queria que eu fizesse de cinco mil exemplares de um relatório sobre a Beldroega? Que o pusesse á venda? Ninguém o compraria. Que o distribuísse grátis? Ninguém o aceitaria. Se é assim, se sempre foi assim, se sempre será assim com todas as publicações deste Ministério, o mais pratico é passar a edição diretamente da tipografia ao forno. Isso evitará a maçada de nos preocuparmos com ela e de a termos por aí a atravancar os arquivos. Não acha V. que é o mais razoável? Retire os que quiser e forno com o resto.
__ E depois que devo fazer? indagou Sizenando, ainda tonto do expeditismo ministerial.
— Escrever outro relatório, respondeu sem vacilar o ministro.
— Para ser queimado novamente,? atreveu-se a mur­murar o poeta-inspetor.
— Está claro, homem! Para que diabo dispendeu o go­verno tanto dinheiro na montagem do forno? Está claro que para incinerar as notas velhas e os relatórios novos. Deste modo se conservam em perpetua atividade o pessoal da Im­prensa, o do Forno e o dos Ministérios. Veja como é sabia a nossa organização administrativa! A montagem do forno foi a melhor idéia do governo passado. Antes dele a Imprensa Nacional vivia entulhada de impressos; a produção de rela­tórios, função capital deste Ministério, periclitava; e era tudo uma desordem, um desequilibrio capaz de induzir o governo á supressão da Imprensa e do meu Ministério. O forno sa­nou a situação. O fervet opus é magnífico e a espada de Damocles está para sempre arredada de nossas cabeças. Hein? Vá. Escreva outro relatório, sobre... sobre... o carurú, por exemplo.
Sizenando deixou o gabinete do ministro profundamente meditativo. S. Excia. derrancara-o!
Viu com dor d'alma as chamas do Forno lerem aquele relatório tão bem acabadinho, tão de encher o olho... E sacou seis meses de licença com vencimentos para descansar.
Esgotada a licença, ia Sizenando começar a pensar em preparar-se para escolher o papel e a tinta com que relatasse o carurú, quando a política apeou da administrança o Dr. Grifado. Sizenando deixou que transcorressem mais seis meses, ao termo dos quais se apresentou ao novo ministro para lhe sondar a orientação.
O novo ministro era um bacharel em ciências jurídicas e sociais, ex-chefe de policia e tão entendido em agricultura como em arqueologia inca. Mas lera uns números das Chá­caras e Quintais e ali se abeberara de umas tantas noções sobre avicultura, policultura, apicultura, criação de canários, etc. Fez dessas uras o seu programa. No discurso de apresentação, ao empossar-se no cargo, emitiu os seguintes conceitos, louvadíssimos pelos circunstantes, empregados no Ministério quase todos e verdadeiras hortaliças em matéria agrícola.
— "A monocultura, senhores, é o grande mal; a policul­tura é o grande bem; no dia em que produzirmos cebola, alho, batata, repolho, coentro, alpiste, alfafa, cerefolio, grão de bico, tremoço, quiabo, espargo, espinafre, alcachofra..."
(Um arrepio de entusiasmo percorreu a espinha dos assis­tentes , os quais se entreolharam gozosos, como quem diz: Temos homem pela proa!)
— "... cebolinho, couve-flor, sorgo, soja amarela, centeio, aveia, figos da Tracia. uvas de Corinto, violetas de Parma..."
— "Bravíssimo!"
— "... violetas de Parma... e outros cereais europeus (vermelhidão no rosto), a prosperidade nacional se assentará num solo basaltico, do qual não a arrancarão as mais rijas lufadas dos vendavais econômicos. Conduzir a pátria a essa Canaã da policultura: eis a mira permanente dos meus esfor­ços, eis o meu programa, eis o fim supremo colimado pela minha atividade. Espero, pois, que, etc., etc.''
Palmas, bravos, guinchos, silvos e outros sons denunciadores de entusiasmo em grau de ebulição estrugiram pela sala. O ministro foi abraçado e beijado — nas mãos. Aquele salvaria a pátria, não havia a menor duvida!
O novo ministro da Agricultura era positivamente uma águia — igual ás anteriores. Tinha programa. Visava con­fundir a rotina monocultura com demonstrações práticas das magnificências da policultura mecânica.
Sizenando recebeu ordem de ir desatolar a vigésima região do atascal da rotina. Aquela gente ainda vivia em pleno pe­ríodo da pedra lascada do café; era mister tange-la à estação áurea da policultura, da avicultura, da sericultura, da criação de canários hamburgueses, etc., preluzida no discurso do ministro.
Chegando à sede do distrito, com séquito numeroso e abun­dante farragem mecânica, Sizenando distribuiu convites para a inaguração dum curso prático. Escolheu para campo de demonstração um "rapador" a um quilômetro da cidade, e lá, no dia emprazado, reuniu os convivas. Veio o prefeito muni­cipal, o porteiro da Câmara, o coletor federal, o promotor público, três jornalistas, quatro professores, o diretor do grupo escolar com a meninada, o vigário da paroquia, o fiscal da iluminação publica, o zelador do cemitério, o carcereiro, dois guardas-chaves da Central, cinco inspetores de quarteirão, o delegado, o cabo do destacamento — e um fazendeiro recém-despojado da sua propriedade por dívidas. A turma docente e os bois do arado formavam grupo á parte.
Sizenando trepou a um cupim e pronunciou breve alocução alusiva à personalidade sobrexcelente do ministro, e ao papel dos novos métodos racionais na agricultura moderna.
— O novo método, meus senhores, é baseado na ciência pura. Vem dos laboratórios de braços dados á química. Começarei pela demonstração do arado, ou charrua, a pedra angular de todo progresso agrícola. Senhor Primeiro Arador, arado para a frente!
Despegou-se da turma um capataz, que empurrou para perto do cupim tribunício um belo arado de disco. Rodea­ram-no os circunstantes, como a um animal raro.
— Eis, meus senhores, um arado de disco. Esta parte se chama cabo; esta é a roda, serve para rodar; estas rodelas são os discos, servem para sulcar a terra; este ferrinho é a manivela graduadora; este pauzinho é o balancim. Aqui se atrelam os bois e cá toma assento o condutor.
Explicou depois o seu funcionamento.
— Vejamo-lo agora em ação. Senhor Primeiro Condutor de Primeira Classe, atrelar!
Adiantou-se da turma um carreiro e tangeu os bois para a máquina, jungindo-os à canga. Os assistentes riram-se. Acharam imensa graça no Tomé Pichorra, que nunca fora senão o Tomé Pichorra, carreiro, transformado em Primeiro Condutor de Primeira Classe! Era de primeiríssima.
— Senhor Primeiro Arador, arar!
O Primeiro Arador saltou à boleia e empunhou as manivelas. O Primeiro Condutor aguilhoou a junta de bois.
—'amo, Bordado! Puxa, Malhado!
Os dois caracús moveram-se pesadamente. A terra, sulcada pelo ferro, abriu-se em leivas. Sizenando exultou.
— Vejam, senhores, que maravilha! Faz o trabalho de vinte homens, além de que deixa a terra desatada, com grande receptividade para a meteorização atmosférica, o que eqüivale a um adubamento copioso.
Este pedacinho encantou sobremodo ao zelador do cemi­tério, o qual não conteve um sincero Muito bem!
Sizenando agradeceu com um gesto de cabeça. O arado deu umas tantas voltas e emperrou. A banda de musica para disfarçar a entaladela, requebrou o Vem cá, mulata. E assim terminou a primeira parte da bela demonstração agrícola.
A segunda parte foi o destorroamento e o gradeamento da terra, feitos com o mesmo luxuoso aparato. Havia Pri­meiro e Segundo Destorroador, Primeiro e Segundo Gradeador. Um mimo de hierarquia!
Ao terminar o serviço, a banda zabumbou um tanguinho.
A terceira parte foi absorvida pelo plantio de cebolas, ba­tatas, alho, alfafa e outras salvações nacionais.
— Os senhores verão, concluiu Sizenando, que maravi­lhosa mésse vai brotar, farta, deste torrão sáfaro e ingrato só porque aplicamos sumariamente os processos modernos da cultura racional, os quais centuplicam a produção e diminuem o trabalho. A máquina agrícola é a verdadeira alavanca do progresso!
— Protesto! A alavanca do progresso sempre foi a im­prensa, contraveio um jornalista, cioso da velha prerrogativa.
— Será, retrucou Sizenando; mas se uma. a imprensa, alçaprema o progresso moral, a outra, a máquina agrícola, alçaprema o progresso econômico!
— Bravissimo! rugiu o zelador do cemitério, inimigo pessoal do Zé Tesoura. Isto é que é!
— Sim, senhor, muito bem! grunhiram outros.
Rubro de gozo pelo feliz sucesso da tirada, Capistrano espichou o dedo para a filarmônica, a pedir o hino nacional.
Desbarretaram-se todos. Erecto sobre o pedestal de cupim, Capistrano imobilizou-se em atitude de religiosa unção, d'olhos fixos no futuro da pátria. E à derradeira nota pôs fim à festa com um escarlate viva à Republica com três "erres".
Acompanharam-no, como um eco, o coletor, o zelador do cemitério, o agente do correio e os funcionários federais demissíveis, além dos bois, que mugiram.
...
Meses mais tarde procedeu-se à colheita. As cebolas haviam apodrecido na terra, devido às chuvas; os alhos vieram sem dentes, devido ao sol; as batatas não foram por diante, devido às saúvas, à quenquem, à geada, a isto e mais aquilo.
Não obstante, seguiu para o Rio um soporoso relatório de trezentas paginas onde Capistrano, entre outras maravi­lhas, notava: "Os resultados práticos do nosso método de­monstrativo in loco têm sido verdadeiramente assombrosos! Os lavradores acodem em massa às lições, aplaudem-nas com delírio e, de volta às suas terras, lançam-se com furor à cultura poli, em tão boa hora lembrada pelo claro espirito de V. Excia. O Senhor Ministro pode felicitar-se de ter aberto de par em par as portas da idade de ouro da agricultura nacional".
Os jornais transcreveram com gabos estes e outros peda­cinhos de ouro. E muita gente se encheu de mais um bocado de ufania por este nosso maravilhoso país.
1910
Monteiro Lobato

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