terça-feira, 6 de novembro de 2018

A MARIA LIONÇA


                       Mar de morros, 
                       em Guaraciaba, MG


 Conto de Miguel Torga
em Contos da Montanha

A MARIA LIONÇA


Galafura, vista da terra chã, parece o talefe do mundo. Um talefe encardido pelo tempo, mas de sólido granito. Com o céu a servir-lhe de telhado e debruçada sobre o Varosa, que corre ao fundo, no abismo, quem qui­ser tomar-lhe o bafo tem de subir por um carreiro torto, a pique, cavado na fraga, polido anos a fio pelos socos do Preguiças, o moleiro, e pelas ferraduras do macho que leva pela arreata. Duas horas de penitência.

Lá, é uma rua comprida, de casas com craveiros à ja­nela, duas quelhas menos alegres, o largo, o cruzeiro, a igreja e uma fonte a jorrar água muito fria. Montanha. O berço digno da Maria Lionça.


Fala-se nela e paira logo no ar um respeito silencioso, uma emoção contida, como quando se ouve tocar a Se­nhor fora. E nem ler sabia! Bens — os seus dons naturais. Mais nada. Nasceu pobre, viveu pobre, morreu pobre, e os que, por parentesco ou mais chegada convivência, lhe her­daram o pouco bragal, bem sabiam que a grandeza da he­rança estava apenas no íntimo sentido desses panos. Na recatada alvura que traziam da arca e na regularidade dos fios do linho de que eram feitos, vinha a riqueza duma existência que ia ser a legenda de Galafura.

Quando Deus a levou, num Março que se esforçava por dar remate prazenteiro a três meses de invernia sem paralelo na lembrança dos velhos, Galafura não quis acre­ditar. Embora a visse estendida no caixão, lívida e serena, aspergia sobre o cadáver a água benta do costume, sem que o seu rude entendimento concebesse o fim daquela vida. O próprio Prior, tão acostumado à transitória dura­ção terrena, ao ser chamado à pressa para lhe dar a extrema-uncão, ungiu-a como se ela fosse mãe dele. Tremia. Até o latim lhe saía da boca aos tropeções, parecendo que pu­nha mais fé no arquejar do peito da moribunda do que na epístola de S.Tiago. Apenas o Dr. Gil, o médico, a tomar-lhe o pulso e a senti-lo a fugir, não teve qualquer estremecimento. Receitou secamente óleo canforado e saiu. Mas o Dr. Gil pertencia a outros mundos. Médico munici­pal em Carrazedo, vinha a quem o chamava, dando a santos e a ladrões a mesma tintura de jalapa e a mesma digitalina. Por isso, a insensiblidade que mostrou não teve significação para ninguém. A rotina do ofício empederni­ra-lhe os sentimentos. O ele declarar calmamente, já no estribo do cavalo, que não havia nada a fazer, foi como se um vedor afirmasse que a fonte da Corredoura ia secar. Sabia-se de sobejo que a fonte da Corredoura era eterna, por ser um olho marinho. E assim que a moribunda exalou o último suspiro, e do quarto a Joana Ró deu a notícia, lavada em lágrimas, cá de fora respondeu-lhe um soluço prolongado, que, em vez de embaciar nos espíritos a imagem da Maria Lionça, a clarificava. E o enterro, no outro dia pela manhã, talvez por causa do ar tépido da primavera que começava e da singeleza das flores campestres que borda­vam as relheiras do caminho, pareceu a todos uma roma­gem voluntária e simples ao cemitério, onde deixavam como uma Salve-rainha pela alma dos defuntos o corpo da Ma­ria Lionça. Não. Não podia morrer no coração de ninguém uma realidade que em setenta anos fora o sol de Galafura. 

Em pequenina, logo o seu riso escarolado encheu a aldeia de lês a lês. Velhos e novos acostumaram-se desde o primeiro instante àquele rosto miúdo e rosado, onde brilhavam dois olhos negros e perscrutadores. Depois, du­rante a meninice e a mocidade, foi ela ainda o ai Jesus da terra. Qualquer coisa de singular a preservava do monco das constipações, dos remendos mal pregados, das nódoas de mosto nas trasfegas. Airosa e desenxovalhada, dava o mesmo gosto vê-la a guardar cabras, a comungar ou a se­gar erva nos lameiros. E quando, já mulher, se falava pelas cavas nas moças casadoiras do lugar, nenhum rapaz lhe pronunciava o nome sem uma secreta emoção. Além de ser a cachopa mais bonita, dada e alegre da terra, era tam­bém a mais assente e respeitada. Quer nas mondas, quer nas esfolhadas, o seu riso significava tudo menos licença. E ninguém lhe punha um dedo. Olhavam-na numa espé­cie de enlevo, como a um fruto dum ramo cimeiro que a natureza quisesse amadurecer plenamente, sem pedrado, num sítio alto onde só um desejo arrojado e limpo o fosse colher. Embora igual às outras, pela pobreza e pela condi­ção, havia à sua volta um halo de pureza que simbolizava a própria pureza de Galafura. Na pessoa da Maria Lionça convergiam todas as virtudes da povoação. Quem é que merecia a dádiva de uma riqueza assim?

Foi preciso que Lourenço Ruivo acabasse a militança e voltasse a Galafura com a mão mais apurada para aper­tar a dela sob a estola. O padre Jaime, o prior de então, abençoou-os como se fossem filhos. E Galafura, depois do arroz doce, pôs-se confiada à espera da felicidade futura do casal. Esquecidos das manhas e artimanhas da vida, todos sonhavam para os dois a ventura que não tinham tido. Só o destino, fiel às misérias do mundo, sabia que fora reservado à Maria Lionça um papel mais significativo: ser ali a expressão humana dum sofrimento levado aos con­fins do possível. Torná-la imune à desgraça seria desenrai­zá-la do torrão nativo.

O polimento do Ruivo, em que a aldeia pusera tantas esperanças, delira-lhe apenas os calos gerados pelo rabo do enxadão. Não fizera dele o companheiro que a rapariga mere­cia. Engravatado aos domingos e de costas direitas o resto da semana, ao fim dos nove meses sacramentais, quando o Pe­dro nasceu, gordo, caladão, rosado, em vez de tirar daquela presença ânimo para se atirar às leiras, acovardou-se de uma boca a mais na casa, empenhou-se e partiu para o Brasil.

A Maria Lionça, essa, ficou. Como todas as mulheres da montanha, que no meio do gosto do amor enviuvam com os homens vivos do outro lado do mar, também ela teria de sofrer a mesma separação expiatória, a pagar os juros da passagem anos a fio, numa esperança continuamente renovada e desiludida na loja da Purificação, que distribuía o correio com a inconsciente arbitrariedade dum jogador a repartir as cartas dum baralho.
— O teu homem tem-te escrito, Maria? — pergun­tava o prior de Páscoa a Páscoa.
— Ele não, senhor. Há quinze anos...

Não acrescentava a mínima queixa à resposta. Fiel ao amor jurado, deixava que todos os encantos lhe mirrassem no corpo, numa resignação digna e discreta. Com o filho sempre agarrado às saias, como um permanente sinal de que já pagara à vida o seu tributo de mulher, mourejava de sol a sol para manter as courelas fofas e gordas. Depositá­rias do pobre património do casal, queria conservá-lo in­tacto e granjeado. Se o outro parceiro desertara, mais uma razão para se manter firme e corajosa ao leme do pequeno barco.
— Nada, Maria? — o prior já nem se atrevia a alargar a pergunta.
— Nada.
Respondia sem revolta ou renúncia na voz. Objecti­vava a situação, lealmente. O que sentia por dentro, era o segredo da sua serenidade.

Até que um dia o Ruivo deu finalmente noticias. Re­gressava. E Galafura, solidária com a grandeza humana da Maria Lionça, dispôs-se a esquecer todas as ofensas e a receber festivamente a ovelha desgarrada.

Quem representava esse perdão colectivo e essa saú­de da alma da terra era o Pedro, o filho, que ao lado da mãe, na estação de Gouvinhas, deixava a imaginação cor­rer desenfreada pela linha fora até se perder nos últimos degraus da escada fugidia feita de aço e sulipas.

Infelizmente, o comboio que surgiu ao longe, avan­çou e passou junto dele a travar o passo, trazia dentro uma desilusão. O pai pareceu-lhe uma sombra esbatida da ima­gem recortada que sonhara.
— Seu moço está mesmo um homem!
A voz rouca e dolente foi apenas a confirmação duma ruína que se lhe estampava no rosto esquelético, cor de palha. O Ruivo que ficara em Galafura, na caução dum retrato em corpo inteiro, era a saúde personificada. E o Ruivo que, escanchado sobre a cavalgadura que o conduzia, respirava à sobreposse, só abstractamente se identificava com o original. Talvez para justificar essa desfiguração, culpado diante da mulher, do filho e dos montes eterna­mente arejados e limpos da Mantelinha, o renegado con­fessou tudo. Vinha doente e desenganado. Males ruins... Já lhe custava engolir. E aquela abafação a apertar, a aper­tar... Mas nada de aflições. Voltava só para morrer.

No hospital da Vila os doutores ainda lhe fizeram um furo no pescoço para aliviar do garrote. Mais uns contos de réis, mas paciência. Galafura, na pessoa da Maria Lionça, se não podia apertar nos braços generosos um corpo comido dos vícios do mundo, queria que ele respirasse ao menos livremente o seu ar puro.

Um mês depois estava estendido sobre a cama onde noivara, imóvel, muito amarelo, muito seco, já com a alma a dar contas a Deus. E no dia seguinte, pela manhã, a boca do cemitério de Galafura tragava-lhe os ossos des­carnados.

Do rescaldo dessa mortalha singular, saiu mais viva ainda a figura de Maria Lionça. Nem o chorou fora dos limites do seu amor atraiçoado, nem se carregou dum luto para além da melancólica negrura que lhe apertava o cora­ção. Manteve-se na justa expressão do sentir de Galafura, enojada e apiedada ao mesmo tempo. Digna e discreta, en­terrou-o e começou a pagar os juros da operação. A trovoa­da não perturbou nem ao de leve o ritmo dos seus passos.

O filho, o Pedro, é que não resistiu ao desencanto. Envergonhado dum pai que lhe passara apenas pelos olhos como um fantasma de podridão, e sem poder abarcar a grandeza daquela mãe que fazia do absurdo o pão da boca, abalou para Lisboa, sem Galafura saber a quê. E nova via
sacra começou na loja do correio.
— Não tens nada, Maria.
Velha, branca, igual, a Lionça voltava pelo mesmo ca­minho e sentava-se ao lume a fiar, pondo na regularidade do fio a estremada regularidade da sua vida. E Galafura, tanto ao passar para os lameiros como na volta, saudava res­peitosamente nela uma permanência que resgatava a traição do marido e a fraqueza do filho. Como à mimosa familiar do adro, ou à fonte incansável do largo, assim a viam, segura e repousante no seu posto, e capaz de todos os heroísmos dum ser humano. O tempo dera-lhes a chave daquela existência, destinada, afinal, mais às provações do sofrimento do que ao gosto das alegrias. Só ela os podia esclarecer e ajudar no desespero de certas horas e situações.

Movediço como a insensatez da sua idade, o filho fi­zera-se marinheiro. E Galafura, humosa, enraizada no dorso da serra de S. Gunhedo, olhava esse rebento, mergulhado em água, como um proscrito. Antes o degredo do pai no Brasil, ao menos aproado a um chão que fazia parte da cosmogonia de Galafura. Diluída na imensidão do mar, a imagem do rapaz perdera toda a nitidez. E sumir-se-ia irremediavelmente na consciência da povoação, sem a ajuda da Maria Lionça. Quando inesperadamente chegou um telegrama da capitania de Leixões e ela partiu, é que viram todos como fora capaz, sozinha, de manter indelével a rea­lidade do ausente. Se se metia a caminho, se enfrentava de rosto calmo a primeira viagem distante e o pavor da cida­de, lá tinha as suas razões, que eram necessariamente ra­zões de Galafura.

Tal e qual. No dia seguinte a aldeia viu com espanto e comoção que trouxera nos braços de sessenta anos o filho morto. Deram-lho no hospital, a exalar o último suspiro. Meteu-se então no comboio com ele ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, a pedir licença a todos, que le­vava ali uma pessoa muito doente. Arredavam-se logo. E assim conseguiu sentá-lo e sentar-se a seu lado.

Galafura quase que não compreendia como pudera com ele, embora fosse meão e magro. O que é certo é que pudera, e sem lágrimas nos olhos lhe falava ternamente mal o revisor aparecia no compartimento.
— Dói-te, filho? Dói-te muito? Pois dói... Dói...
Encostava-o ao ombro, enrolava-lhe a manta nas per­nas hirtas e mostrava os bilhetes.

Em Gouvinhas apeou-se. À porta da estação, o guar­da arregalou muito os olhos, mas deixou passar. E daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde nascera e o regaço eterno de sua mãe.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

CANÇÃO DE BERÇO









CANÇÃO DE BERÇO



O amor não tem importância.
No tempo de você, criança,
uma simples gota de óleo
povoará o mundo por inoculação,
e o espasmo
(longo demais pra ser feliz)
não mais dissolverá as nossas carnes.

Mas também a carne não tem importância.
E doer, gozar o próprio cântico afinal é indiferente.
Quinhentos mil chineses mortos, trezentos corpos de namorados sobre a via férrea
e o trem que passa, como um discurso, irreparável:
tudo acontece, menina,
e nada fica nos teus olhos.

Também a vida é sem importância.
Os homens não me repetem
nem me prolongo até eles.
A vida é tênue, tênue.
O grito mais alto ainda é suspiro,
os oceanos calaram-se há muito.
Em tua boca, menina,
ficou o gosto de leite?
ficará o gosto de álcool?

Os beijos não são importantes.
No teu tempo nem haverá beijos.
Os lábios serão metálicos,
civil e mais nada, será o amor
dos indivíduos perdidos na massa
e só uma estrela
guardará o reflexo
do mundo esvaído
(aliás sem importância). 

         Carlos Drummond de Andrade
         no Sentimento do Mundo.