quarta-feira, 12 de maio de 2010

AVISO

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Aviso
Era uma noite do mês de junho de 1941. Antônio Fernandinho, também chamado pela família por Totõe, e suas irmãs Querubina e Bernadina dormiam languidamente na Fazenda Santo Antônio da Conceição - a fazenda tinha este nome porque jazia próxima ao Ribeirão da Conceição, numa região conhecida por Conceição do Arco-Verde, vizinha de outras paragens conhecidas por Macuco, Amorim, Bernardo e por aí afora, e porque seus donos sempre foram Antônios.





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Os outros 12 irmãos e irmãs já tinham se casado e ido morar em outras grotas, algumas bem próximas da fazenda. A mãe, Carlota, morrera no dia de São José do ano de 1927 e o pai, Antônio Fernandes, o Fernandinho velho, já bastante enfermo, estava internado no único hospital da vila mais próxima.
Ele tinha problema no coração, um mal que o Doutor Barroso, também único médico da vila, dizia ser angina. Mas quem confirmava mesmo o diagnóstico era um certo medicamento, uns comprimidinhos que o Doutor lhe receitara. O velho andava com um vidrinho cheio deles no bolso e, quando a crise vinha, colocava um debaixo da língua e o aperto no coração sumia.
O céu estava embruscado - era comum o céu embruscar, só não chovia porque era junho, e junho é mês de seca, não chove mesmo - tornando a noite irremediavelmente escura. Qualquer mortal podia arregalar os olhos o quanto pudesse e rodar a palma da mão a meio palmo do rosto que não via absolutamente nada. Lá pelas tantas, madrugada velha, o até então aconchegante silêncio foi interrompido por uns tinidos que fizeram Totõe, só ele, acordar.
Tomando consciência aos poucos, tentava compreender. Quando teve mais lucidez percebeu que os tinidos vinham da cozinha. Mais um tempo e percebeu que se tratava de algo metálico, podia ser garfo, colher ou faca, batendo nos canecos esmaltados. Os tais canecos ficavam pendurados em vários e pequenos pregos pregados em uma tábua comprida, esta pregada à parede por três pregos maiores. Abaixo estava a caixa d`água, bem ao lado de um fogão à lenha que invadia a cozinha com suas seis trempes alinhadas.
Totõe resolveu chamar pelas irmãs. Não que estivesse com medo - não tinha medo destas coisas - mas porque queria saber se estavam escutando.
- Bernadina, Querubina, vocês ouviram?
Pausa. Nem um ruído. Dormiam que nem pedra. Perguntou novamente, agora mais alto.
- Meninas, vocês ouviram alguma coisa?
- Hã?
Respondeu uma delas. A voz sonolenta ele não conseguiu identificar. Nem poderia. Além de sonolenta, saíra de debaixo dos cobertores. Tinham o costume de cobrir a cabeça nas noites mais frias. Talvez por isso também não tinham escutado nada.
- Quem respondeu?
- Eu! A Berna!
- Você escutou um barulho vindo lá da cozinha?
- Não. Não escutei nada.
- Pergunte então à Querubina!
- Querubina!!! Querubina!!! Acorda!
- Que que é Berna!
- Ouviu um barulho vindo da cozinha?
- Como é que ia ouvir Berna. Eu tava dormindo.
- Totõe tá ouvindo!
- Então fique quieta! Vamos ver se repete!
Totõe não pôde ouvir o diálogo. Apenas escutava um zuzum de vozes femininas vindo do quarto delas. Pediu que parassem de falar. Passado um tempo o mesmo barulho começou de novo.
- Estão ouvindo agora? - Perguntou Totõe.
- Ninguém ta ouvindo nada! - Retrucou, agora Querubina.
Totõe, homem devoto, começou a achar que o problema era com ele. Já tinha decidido ir até a cozinha. Quando começou a se mexer para sair da cama, percebeu que o barulho mudara. Agora o tinido era um só, como se estivessem batendo em apenas um dos canecos. Já se encontrava sentado na cama. Ficou parado, imóvel, atento por um tempo. Era só aquele tinido.
- É impossível que as meninas não escutem isso. Vou perguntar de novo. - Disse.
- Estão ouvindo agora?
- Não. Num tem nada lá na cozinha não. Sê num tá sonhando Totõe?
- Sonhando acordado, cambada?!
Totõe se levantou. Assim que pôs os pés no chão, o barulho parou. Foi, pé por pé, até a cozinha e não viu nada. Então pegou um garfo e começou a bater naqueles canecos dependurados.
- Tô ouvindo agora! Tá ouvindo Berna? - Cochichou Querubina.
- Agora tô! - Respondeu Berna, também aos cochichos.
- Agora ouvimos Totõe! - Gritou Berna.
- Agora sou eu cambada!
Na verdade ele tava procurando era aquele cujo tinido se repetira. Achou. O caneco era dele. É, ele tinha um caneco separado, só dele. Um caneco maior que os outros, também esmaltado.
Totõe percebeu que o negócio era com ele. Voltou para a cama e não se ouviu mais nenhum tinido daquele momento em diante. Apenas o barulho do bucólico silêncio, do silêncio de dentro, do silêncio de fora.
Quando o dia começou a raiar, galo cantando, galinhas ciscando e cacarejando, gaviões carrapateiros piando, Totõe já estava com o cavalo atrelado rodando em volta do engenho. De pé, do lado de um monte de canas, colocando-as entre as moendas, estava Sebastião Ananias, o Bastião Nania. Ele era o moedor. Em cerca de duas horas de moagem a tacha já estava cheia. Tacha grande. Dava carga e meia de rapadura. O tufo de fumaça saindo da chaminé acusava: Querubina e Bernadina já tinham botado fogo na fornalha do comprido fogão e, enquanto a água esquentava, uma moia o café na dispensa e outra raspava uma rapadura. Cuidavam dos afazeres na cozinha.
A porteira do terreiro de gado que ficava na frente da fazenda fez seu rangido típico. Alguém a abrira. Quem quer que tenha sido, entrou sorrateiramente. Totõe, que sempre era atento a qualquer barulho nos arredores, já estava preocupado. Normalmente, antes ou depois do ranger da porteira, o camarada que tivesse chegando anunciava-se gritando um “Opa!” ou um “Ô de casa!”. Ficou mais intrigado ainda porque os cachorros, havia cinco, não se manifestaram.
A tacha, cuja garapa já se encontrava em plena fervura, ficava na varanda da cozinha. Totõe já estava retirando a sujeira mais grossa com a escumadeira. De repente ouviu um atropelo. Olhou para o outro lado da varanda, a saída que dava para o terreiro, e viu um vulto entrando. Não percebeu de imediato quem era porque o vapor que saía da tacha ofuscava sua vista. Mas quando o vulto se aproximou, reconheceu. Era o Cassiano.
- Antõe! Tá Bão Antõe!
- Cassiano!? O sê por aqui essas horas? Que diabo foi?
Cassiano não era homem de andar cedo, muito menos de trabalhar. Ia de casa em casa pedindo mantimentos: sal, querosene... Coisas frugais, suficientes para um pacato como o Cassiano. Foi por isso que Totõe assustou-se com sua chegada naquela hora.
- Trago um recado Antõe!
Totõe arrregalou os olhos. Eram olhos de uma cor azul celestial, vivos, que interrogavam, que protestavam, que concluíam. Arredou-se um pouco para fugir daquele vapor saindo da tacha, que o separava do Cassiano. Queria vê-lo melhor. Queria ver seus olhos. Assim poderia ler seus pensamentos. Quando o viu, teve um calafrio. Cassiano tinha um olhar sombrio como nuca tivera. Pelo menos Totõe nunca os vira assim antes.
- É que...
- Já sei Cassiano. Não precisa falar. Papai morreu esta madrugada não foi???
- Foi sim Antõe!!!

Texto de:
José Sebastião da Cunha Fernandes



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A história parece tratar de um tema místico, ou sobrenatural, ilógico portanto. Entretanto notamos que todo o desenvolvimento da história se dá em torno de aferições absolutamente lógicas. Pois o protagonista, não questiona a origem dos ruídos e sua improbabilidade de ser fato causado por agentes físicos ou reais, antes examina cautelosamente o que está ocorrendo: 
-se alguém mais, além dele, ouve; 
-quais as características dos sinais; 
-de onde vem;
 e passa a testar as hipóteses.
 
           A descrição dos acontecimentos, bem como do local e ambiente é tão cuidadosa quanto as providências tomadas pelo protagonista, e o texto tem o sabor típico da oralidade mineira, preciosista em detalhes, que vão construindo o clima e a ambiência precisa do evento. Percebe-se que quem diz, compraz-se largamente com os sabores das palavras e das frases.
O final aparenta ser abrupto, porém confirma a certeza do protagonista na clareza e perfeita lógica de suas observações. É digno de nota ainda a descrição que faz das observações sobre o olhar e comportamentos do personagem que vem trazer a notícia, o protagonista mais uma vez confia plenamente que todas as características que ele conhece, por observação do outro, são sinais puramente verdadeiros e lógicos.


As ilustrações são todas de locais de Guaraciaba, Minas Gerais. Uma região não muito distante da região descrita no texto, acredito que devem ter muitas semelhanças na paisagem e na cultura. Os desenhos são de autoria de Edilson Guglielmeli.

3 comentários:

  1. Muito legal! Os detalhes do cotidiano das pessoas do campo e de tempos passados, me deram uma saudade que não sei de onde vem. Pode ser do mesmo lugar de onde veio o barulho na cozinha deste conto? rs.

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  2. Interessante o conto... Nem sei se tão afeito à lógica, ou se simplesmente submisso ao mistério. Pareceu-me que o protagonista ficou tomou a melhor postura de simplesmente observar, e não julgar, aceitando e compreendendo, por isto mesmo, melhor os fatos.

    Quanto aos desenhos... Realmente... A ambiência conseguida é de quem teve a sensibilidade dos que "viveram" o local. O texto passa bem isto, e você traduziu perfeitamente no papel.

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  3. Não sei se pelo tipo da narrativa,
    pela ambientação,
    mas tive a impressão que o autor tava me provocando a sentir (conduzindo)
    exatamente o aspecto místico e sobrenatural
    Daí o choque (abrupto) em deparar com o
    que há de mais real _ a morte (do pai).

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