Li Monteiro Lobato na infância, muito de sua obra para crianças, coisas do Sítio do Pica Pau Amarelo. E nunca ouvira falar de sua obra para adultos.
Passado muito tempo e já adulto , por acaso tomei contato com um de seus contos, da coleção de Cidades Mortas, que foi o “Um Homem de Consciência” , depois descobri num sebo um exemplar de um Urupês, caindo aos pedaços e outro de uma coletânea de suas cartas.
Volta e meia abro com extremo cuidado meu Urupês e avanço com delícia sobre os contos. Deste “O Luzeiro Agrícola”, da frase:" _ A Posteridade me vingará, javardos!" saiu a inspiração para o nome de meu primeiro blog, ainda em cartaz, o Aos Pósteros .
Pois sempre fico imaginando como gostaria de objurgar esta frase por aí de vez em quando. Me divirto muito pensando-me um quase Dom Quixote e bastante ridículo.
Monteiro Lobato ainda é muito lembrado por sua literatura para infância, mas encontrei quase ninguém que soubesse de seus contos adultos. Dizem que aquela crítica que fez à pintura de Anita Malfatti o teria feito cair em desgraça com a posteridade. Talvez... Parece-me entretanto que se trata de outra coisa: Ainda escrevendo para adultos Lobato parece a Emília, cruel, terrível mas perfeitamente compreensível para as crianças e nada para os adultos, esses que esqueceram sua criança no tempo de outrora.
Aí está este conto O Luzeiro Agrícola, de 1910, e ainda muito parecido com hoje. Pois se for preciso, encarne-se de criança e divirta-se a valer.
Bom proveito
O luzeiro agrícola
Sizenando Capistrano é o inspetor agrícola do vigésimo distrito. Incumbe-lhe fomentar a pecuária, elaborar relatórios, ensinar o uso de máquinas agrícolas, preconizar a policultura, combater a rotina e ao fim de cada mês perceber na coletoria a realidade de setecentos mil réis.
Antes de inspetor Capistrano fora poeta. Cultivara as musas. Não sabia que coisa era um pé de café, mas entendia de pés métricos, pés quebrados e fazia pé d'alferes a todas as divas do Parnaso. Tal cultura, entretanto, emagrecia-o. A sua produção de hendecassilabos, alexandrinos, quadras, odes, sonetos, poemas, vilancetes, eglogas, sátiras, anagramas, logogrifos, charadas elétricas e enigmas pitorescos, conquanto copiosa, não lhe dava pão para a boca, nem cigarro para o vício. A palidez de Capistrano, sua cabeleira à Alcides Maia, sua magreza à Fagundes Varela, seu spleen à Lord Byron e suas atitudes fatais, ao invés de lhe aureolarem a face dos nimbos da poesia, comiseravam o burguês, que, ao vê-lo deslisar como alma penada pelas ruas, horas mortas, de mãos no bolso e olho nostalgicamente ferrado na lua, murmurava condoído:
— Não é poesia, não, coitado, é fome...
O editor artilhava a cara de carrancas más quando Capistrano lhe surgia escritório a dentro com a maçaroca de versos candidatos a edição.
— São versos puros, senhor, versos sentidos, cheios d'alma. Virão enriquecer o patrimônio lírico da humanidade.
— E arruinar o meu patrimônio econômico, retorquia a fera. De lirismo bastam-me aquelas prateleiras que editei no tempo em que era tolo e que se não vendem nem a peso.
— Ó vil metal! murmurava o poeta, franzindo os lábios num repuxo de supremo enojo. O' mundo vil! O' torpe humanidade! Em que te distingues, Homem, rei grotesco da criação, do suíno toucinhento que espapaça nos lameiros? Manes de Juvenal! Eumenides! Musas de Cólera! Inspirai-me versos candentes com que cauterise até aos penetrais da alma este verme orgulhoso e mesquinho! Baudelaire, dá-me os teus venenos...
— Rapazes. berrava o livreiro á caixerada, ponham-me este vate no olho da rua!
Ante o manu-mliitari irretorquível, o poeta apanhava a papelada lírica e moscava-se para a zona neutra do passeio, onde, readquirida a altivez ossianica, objurgava para dentro da loja hostil:
_ A Posteridade me vingará, javardos!
E sacudia à porta do editor o pó das suas sandálias, que no caso eram surradas e já risonhas botinas de bezerro. Em seguida, remessando para trás a cabeleira, num repelão, ia fincar-se sinistramente á esquina próxima, em torva atitude. á espera dum conhecido esfaqueável a quem, com gestos soberbos á Cyrano de Bergerac. extorquisse um níquel.
Cansado. entretanto, de ouvir estrelas em jejum, de amar a lua no céu sem possuir um queijo na terra, acatou a voz do estômago e quebrou a lira — para viver. Meteu a tesoura nas melenas, deu brilho aos sapatos, desfatalizou o semblante, substituiu o ar absorto e vago do aédo pelo ar avacalhado do pretendente, e á força de pistolões guindou-se ás cumeadas do Morro da Graça. (Residência do general Pinheiro Machado, o mandão da política na época.) Todo mundo o recomendou ao Gaúcho Onipotente, porque todos andavam fartos daquela perpetua fome lírica a deambular pelas ruas, caçando rimas e filando cigarros. Que fosse acarrapatar-se ao Estado. O Estado é boi gordo, semelhante àquela estatua eqüestre de Hindenburg, feita de madeira, em que os alemães pregavam pregos de ouro. A diferença está em que no Estado, em vez de tachas de ouro, pregam-se Capistranos vivos.
Foi apresentado ao Pinheiro.
— Então, menino, que quer?
— Um empreguinho qualquer que Vossa Onipotência haja por bem conceder-me.
— E para que presta você, menino?
— Eu? Eu... fui poeta. Cantei o Amor, a Mulher, a Beleza, as manhãs cor de rosa. as auroras boreais, a natureza enfim. Romântico, embriaguei-me na Taverna de Hugo. Clássico, bebi o mel do Himeto pela taça de Anacreonte. Evoluído para o parnasianismo, burilei mármores de Paros com os cinzeis de Heredia. Quando quebrei a lira, estava ascendendo ao cubismo transcendental. Sim, general, sou um gênio incompreendido, novo Asverus a percorrer todas as regiões do ideal em busca da Forma Perfeita. Qual Prometeu, vivi atado ao potro do Inania Veria, onde me roeu o Abutre da Perfeição Suprema. Fui um Torturado da Forma...
O general, que era amigo das belas imagens, iluminou o rosto de um sorriso promissor.
— Poeta, disse ele, eu também sou poeta. Rimo homens. Componho poemas heroi-comicos. Conheces a Hermeida? E' obra minha. Amo as belas imagens e tenho lançado algumas imortais. "A mulher de César"! "Os levitas do Alcorão"! Hein? Tu me caiste em graças e, pois, acolho-te sob o meu palio. Que queres ser?
— Inspetor.
— ... de quarteirão ?
— Isso não.
— Agrícola?
— Ou avícola...
— De que região?
— Não faço questão.
— Se-lo-ás do vigésimo distrito. Conheces as culturas rurais?
— Já cultivei batatas gramaticais.
__ E de pecuária, entendes? Distingues um zebú dum galo Brama? um pampa dum morzelo?
— Já cavalguei Pegaso em pêlo!
— Conheces a suinocultura ? Sabes como se cria o canastrão ?
— Sei trinca-lo com tutu de feijão.
— És um gênio, não ha que ver. Talvez faça de ti, um dia, presidente da Republica. Teu nome?
— Sizenando. Capistrano é sobrenome.
— Cá me fica. Vai, que estás aí, estás fomentando a .agricultura como inspetor do vigésimo distrito, com setecentos bagos por mês. Os poetas dão ótimos inspetores agrícolas e tu tens dedo para a coisa. Vai, levita do Ideal...
II
Sizenando Capistrano, mal se pilhou tranformado de famelico ouvidor de estrelas em peça mestra do Ministério da Agricultura... casou, luademelou três meses e ao cabo compareceu perante o ministro para saber em que rumos nortear a sua atividade.
O ministro franziu a testa: é tão difícil dar ocupação aos fósforos ministeriais... Pensou um bocado e,
— Escreva um relatório, sugeriu.
— Sobre que, Excia.?
— Sobre qualquer coisa. Relate, vá relatando. A função capital do nosso ministério é produzir relatórios de arromba sobre o que ha e o que não ha. Relate.
— Mas, Excia., eu desejava ao menos uma sugestãozinha emanada do alto critério de V. Excia. sobre o tema do relatório que a bem da lavoura V. Excia., com tanto descortino, me incumbe de escrever...
— Já disse: sobre qualquer coisa que lhe dê na veneta. Relate, vá relatando e depois apareça.
Sizenando saiu tonto com os processos expeditos do dr. Grifado ( Um ministro da Agricultura da época que não era doutor mas não protestava contra o tratamento.) com assento na pasta, e passou três meses de papo ao ar, procurando uma tese conveniente. Como por essa época a lua de mel lhe entrasse em plena mingoante, houve certo dia rusga brava ao jantar, e a consorte, mulherzinha de pêlo crespo no nariz, pespegou-lhe pela cara com um prato de salada de beldroega. Tal o celebre estalo que abriu a inteligência do padre Antônio Vieira em menino, aquele obuz culinário teve a estranha ação de iluminar os refolhos cerebrais do inspetor.
— Eureka! berrou ele radiante. E com um grande riso de gozo na cara emplastada de verdura, ergueu-se precipitadamente da mesa e correu ao escritório. A mulherzinha, entre colérica e pasmada, perguntava de si para si:
— Estará louco ?
Sizenando deitou mãos á tarefa e levou a cabo um estudo botânico-industrial da beldroega, com afã tal que, transcorridos dez meses, dava a prelo o Relatório sobre o Papalvum brasiliensis. vulgo Beldroega, e sua aplicação na culinária.
O ano seguinte gastou-o em rever as provas do calhamaço, a modo de escoima-lo dos mínimos vícios de linguagem. O antigo torturado da Forma ressurtia ali... Saiu obra papafina, em ótimo papei e com muitas gravuras elucidativas. Entre estas, em belo destaque, os retratos do Ministro e do Diretor da Agricultura, do Marechal Hermes, do tenente Pulquerio, do Frontín, do Pinheiro e mais protuberantes beldroegas do momento. Pronta a edição, embaraçou-se Sizenando quanto ao destino a dar-lhe. Que fazer de tanta beldroega?
Foi ao ministro.
— Excelência! De acordo com as sabias ordens de V. Excia., venho comunicar a V. Excia. que se acha pronta a edição do relatório sobre o Papalvum.
— Que papalvo? Que relatório? inquiriu o ministro,
deslembrado.
— O que V. Excia., me incumbiu de escrever.
— Quando?
— Haverá dois anos.
— Não me recordo, mas é o mesmo. Mande a papelada para o forno de incineração da Casa da Moeda.
Sizenando abriu a maior boca deste mundo. Compreendendo aquela estuporação, o ministro sorriu.
— Então? Que queria que eu fizesse de cinco mil exemplares de um relatório sobre a Beldroega? Que o pusesse á venda? Ninguém o compraria. Que o distribuísse grátis? Ninguém o aceitaria. Se é assim, se sempre foi assim, se sempre será assim com todas as publicações deste Ministério, o mais pratico é passar a edição diretamente da tipografia ao forno. Isso evitará a maçada de nos preocuparmos com ela e de a termos por aí a atravancar os arquivos. Não acha V. que é o mais razoável? Retire os que quiser e forno com o resto.
__ E depois que devo fazer? indagou Sizenando, ainda tonto do expeditismo ministerial.
— Escrever outro relatório, respondeu sem vacilar o ministro.
— Para ser queimado novamente,? atreveu-se a murmurar o poeta-inspetor.
— Está claro, homem! Para que diabo dispendeu o governo tanto dinheiro na montagem do forno? Está claro que para incinerar as notas velhas e os relatórios novos. Deste modo se conservam em perpetua atividade o pessoal da Imprensa, o do Forno e o dos Ministérios. Veja como é sabia a nossa organização administrativa! A montagem do forno foi a melhor idéia do governo passado. Antes dele a Imprensa Nacional vivia entulhada de impressos; a produção de relatórios, função capital deste Ministério, periclitava; e era tudo uma desordem, um desequilibrio capaz de induzir o governo á supressão da Imprensa e do meu Ministério. O forno sanou a situação. O fervet opus é magnífico e a espada de Damocles está para sempre arredada de nossas cabeças. Hein? Vá. Escreva outro relatório, sobre... sobre... o carurú, por exemplo.
Sizenando deixou o gabinete do ministro profundamente meditativo. S. Excia. derrancara-o!
Viu com dor d'alma as chamas do Forno lerem aquele relatório tão bem acabadinho, tão de encher o olho... E sacou seis meses de licença com vencimentos para descansar.
Esgotada a licença, ia Sizenando começar a pensar em preparar-se para escolher o papel e a tinta com que relatasse o carurú, quando a política apeou da administrança o Dr. Grifado. Sizenando deixou que transcorressem mais seis meses, ao termo dos quais se apresentou ao novo ministro para lhe sondar a orientação.
O novo ministro era um bacharel em ciências jurídicas e sociais, ex-chefe de policia e tão entendido em agricultura como em arqueologia inca. Mas lera uns números das Chácaras e Quintais e ali se abeberara de umas tantas noções sobre avicultura, policultura, apicultura, criação de canários, etc. Fez dessas uras o seu programa. No discurso de apresentação, ao empossar-se no cargo, emitiu os seguintes conceitos, louvadíssimos pelos circunstantes, empregados no Ministério quase todos e verdadeiras hortaliças em matéria agrícola.
— "A monocultura, senhores, é o grande mal; a policultura é o grande bem; no dia em que produzirmos cebola, alho, batata, repolho, coentro, alpiste, alfafa, cerefolio, grão de bico, tremoço, quiabo, espargo, espinafre, alcachofra..."
(Um arrepio de entusiasmo percorreu a espinha dos assistentes , os quais se entreolharam gozosos, como quem diz: Temos homem pela proa!)
— "... cebolinho, couve-flor, sorgo, soja amarela, centeio, aveia, figos da Tracia. uvas de Corinto, violetas de Parma..."
— "Bravíssimo!"
— "... violetas de Parma... e outros cereais europeus (vermelhidão no rosto), a prosperidade nacional se assentará num solo basaltico, do qual não a arrancarão as mais rijas lufadas dos vendavais econômicos. Conduzir a pátria a essa Canaã da policultura: eis a mira permanente dos meus esforços, eis o meu programa, eis o fim supremo colimado pela minha atividade. Espero, pois, que, etc., etc.''
Palmas, bravos, guinchos, silvos e outros sons denunciadores de entusiasmo em grau de ebulição estrugiram pela sala. O ministro foi abraçado e beijado — nas mãos. Aquele salvaria a pátria, não havia a menor duvida!
O novo ministro da Agricultura era positivamente uma águia — igual ás anteriores. Tinha programa. Visava confundir a rotina monocultura com demonstrações práticas das magnificências da policultura mecânica.
Sizenando recebeu ordem de ir desatolar a vigésima região do atascal da rotina. Aquela gente ainda vivia em pleno período da pedra lascada do café; era mister tange-la à estação áurea da policultura, da avicultura, da sericultura, da criação de canários hamburgueses, etc., preluzida no discurso do ministro.
Chegando à sede do distrito, com séquito numeroso e abundante farragem mecânica, Sizenando distribuiu convites para a inaguração dum curso prático. Escolheu para campo de demonstração um "rapador" a um quilômetro da cidade, e lá, no dia emprazado, reuniu os convivas. Veio o prefeito municipal, o porteiro da Câmara, o coletor federal, o promotor público, três jornalistas, quatro professores, o diretor do grupo escolar com a meninada, o vigário da paroquia, o fiscal da iluminação publica, o zelador do cemitério, o carcereiro, dois guardas-chaves da Central, cinco inspetores de quarteirão, o delegado, o cabo do destacamento — e um fazendeiro recém-despojado da sua propriedade por dívidas. A turma docente e os bois do arado formavam grupo á parte.
Sizenando trepou a um cupim e pronunciou breve alocução alusiva à personalidade sobrexcelente do ministro, e ao papel dos novos métodos racionais na agricultura moderna.
— O novo método, meus senhores, é baseado na ciência pura. Vem dos laboratórios de braços dados á química. Começarei pela demonstração do arado, ou charrua, a pedra angular de todo progresso agrícola. Senhor Primeiro Arador, arado para a frente!
Despegou-se da turma um capataz, que empurrou para perto do cupim tribunício um belo arado de disco. Rodearam-no os circunstantes, como a um animal raro.
— Eis, meus senhores, um arado de disco. Esta parte se chama cabo; esta é a roda, serve para rodar; estas rodelas são os discos, servem para sulcar a terra; este ferrinho é a manivela graduadora; este pauzinho é o balancim. Aqui se atrelam os bois e cá toma assento o condutor.
Explicou depois o seu funcionamento.
— Vejamo-lo agora em ação. Senhor Primeiro Condutor de Primeira Classe, atrelar!
Adiantou-se da turma um carreiro e tangeu os bois para a máquina, jungindo-os à canga. Os assistentes riram-se. Acharam imensa graça no Tomé Pichorra, que nunca fora senão o Tomé Pichorra, carreiro, transformado em Primeiro Condutor de Primeira Classe! Era de primeiríssima.
— Senhor Primeiro Arador, arar!
O Primeiro Arador saltou à boleia e empunhou as manivelas. O Primeiro Condutor aguilhoou a junta de bois.
—'amo, Bordado! Puxa, Malhado!
Os dois caracús moveram-se pesadamente. A terra, sulcada pelo ferro, abriu-se em leivas. Sizenando exultou.
— Vejam, senhores, que maravilha! Faz o trabalho de vinte homens, além de que deixa a terra desatada, com grande receptividade para a meteorização atmosférica, o que eqüivale a um adubamento copioso.
Este pedacinho encantou sobremodo ao zelador do cemitério, o qual não conteve um sincero Muito bem!
Sizenando agradeceu com um gesto de cabeça. O arado deu umas tantas voltas e emperrou. A banda de musica para disfarçar a entaladela, requebrou o Vem cá, mulata. E assim terminou a primeira parte da bela demonstração agrícola.
A segunda parte foi o destorroamento e o gradeamento da terra, feitos com o mesmo luxuoso aparato. Havia Primeiro e Segundo Destorroador, Primeiro e Segundo Gradeador. Um mimo de hierarquia!
Ao terminar o serviço, a banda zabumbou um tanguinho.
A terceira parte foi absorvida pelo plantio de cebolas, batatas, alho, alfafa e outras salvações nacionais.
— Os senhores verão, concluiu Sizenando, que maravilhosa mésse vai brotar, farta, deste torrão sáfaro e ingrato só porque aplicamos sumariamente os processos modernos da cultura racional, os quais centuplicam a produção e diminuem o trabalho. A máquina agrícola é a verdadeira alavanca do progresso!
— Protesto! A alavanca do progresso sempre foi a imprensa, contraveio um jornalista, cioso da velha prerrogativa.
— Será, retrucou Sizenando; mas se uma. a imprensa, alçaprema o progresso moral, a outra, a máquina agrícola, alçaprema o progresso econômico!
— Bravissimo! rugiu o zelador do cemitério, inimigo pessoal do Zé Tesoura. Isto é que é!
— Sim, senhor, muito bem! grunhiram outros.
Rubro de gozo pelo feliz sucesso da tirada, Capistrano espichou o dedo para a filarmônica, a pedir o hino nacional.
Desbarretaram-se todos. Erecto sobre o pedestal de cupim, Capistrano imobilizou-se em atitude de religiosa unção, d'olhos fixos no futuro da pátria. E à derradeira nota pôs fim à festa com um escarlate viva à Republica com três "erres".
Acompanharam-no, como um eco, o coletor, o zelador do cemitério, o agente do correio e os funcionários federais demissíveis, além dos bois, que mugiram.
...
Meses mais tarde procedeu-se à colheita. As cebolas haviam apodrecido na terra, devido às chuvas; os alhos vieram sem dentes, devido ao sol; as batatas não foram por diante, devido às saúvas, à quenquem, à geada, a isto e mais aquilo.
Não obstante, seguiu para o Rio um soporoso relatório de trezentas paginas onde Capistrano, entre outras maravilhas, notava: "Os resultados práticos do nosso método demonstrativo in loco têm sido verdadeiramente assombrosos! Os lavradores acodem em massa às lições, aplaudem-nas com delírio e, de volta às suas terras, lançam-se com furor à cultura poli, em tão boa hora lembrada pelo claro espirito de V. Excia. O Senhor Ministro pode felicitar-se de ter aberto de par em par as portas da idade de ouro da agricultura nacional".
Os jornais transcreveram com gabos estes e outros pedacinhos de ouro. E muita gente se encheu de mais um bocado de ufania por este nosso maravilhoso país.
1910
Monteiro Lobato